PIRACICABA, SÁBADO, 27 DE ABRIL DE 2024
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08 DE MARÇO DE 2024

No Dia da Mulher, ecoa a voz de Benedicta, uma mãe escravizada


‘Achados do Arquivo’ destaca fato de 1867 em que aparece em processo-crime; a ré do Tribunal de Júri de 157 anos atrás, hoje é testemunha da História



EM PIRACICABA (SP)  

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Reprodução do quadro do pintor francês Jean-Baptiste Debret, de 1839, que retrata uma família no Rio de Janeiro durante o período escravagista no Brasil



“Por qualquer modo que encaremos a escravidão, ela é, e sempre será um grande mal” (Conto ‘A Escrava’, de Maria Firmino dos Reis).

A história da Série ‘Achados do Arquivo’ desta semana é preciosa como fonte de conhecimento. Por meio dela, é possível entender como era a vida e como funcionavam a lei e o processo criminal no período escravagista brasileiro. Desde já, é possível afirmar sem qualquer relativismo: a Escravidão era um sistema malvado; literalmente malvado. 

Neste Dia Internacional da Mulher – celebrado em 8 de Março – Piracicaba ouvirá a voz de quem, ao longo de 157 anos, foi silenciada. É um som de dor e sofrimento. E também de poder e soberania. Neste texto, é possível ler e ouvir o contexto da sociedade alicerçada na opressão e como ela se expressava na então Vila da Constituição. 

Benedicta. Apenas um nome. Mas guarde este nome. É sobre Benedicta – e também sobre tantas outras mulheres negras, mães e escravizadas – quem será ouvida neste processo que registra o crime cometido por ela: a morte de seus três filhos. Mas nesta audiência do Tribunal do Júri, revelada em documentos guardados pelo cartorário Jair Toledo Veiga e doados para o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara, não há que se acusar, tampouco julgar. Agora, resta ouvir e conhecer o sofrimento estridente. 

Segunda-feira, 21 de janeiro de 1867. O inspetor e escrivão Joaquim Muniz de Aguiar encaminha o seguinte oficio para o subdelegado de polícia: 

Exímio Senhor! Comunico a vossa senhoria, que ontem ao meio dia – mais ou menos – foram encontrados assassinados os menores Barbara, Joaquim e Jeronimo, filhos de Benedicta, todos escravos de João Leite Ferraz de Sampaio, cujo delito consta-me fora praticado pela mesma mãe dos ditos menores. Sabem do fato: Manoel Ferraz de Campos, e o preto Ignácio, escravo do mesmo Sampaio. [...](Em transcrição livre) 

Esse trecho inicia o processo criminal, com o contexto já dado: uma mulher escravizada, de nome Benedicta, teria assassinado os três filhos – uma menina e dois meninos.

O corpo de delito já existia naquela época e, na ocasião, foi procedido por Eulálio da Costa Carvalho e pelo farmacêutico Augusto Cesar de Oliveira. Os dois avaliaram os corpos mortos das três crianças. No mesmo dia, 21 de janeiro, Benedicta foi recolhida a prisão, e assim afirma o carcereiro em declaração: 

Recebi e fica recolhida a prisão a parda Benedicta, escrava de João Leite Ferraz de Sampaio. Constituição, 21 de janeiro de 1867. Antônio João Pires, o carcereiro. (Em transcrição livre)

O processo segue analisando o corpo dos menores, após minuciosa avaliação, conclui-se que foram mortos com pancadas na nuca. Bárbara de seis anos, Jeronimo de quatro e Joaquim de dois.

Grande parte dos documentos daquele período trazem apenas registros, citações ou pequenos versos de pessoas que não tinham direito a voz e nem mesmo ao sobrenome, feitos pelas mãos, e pelas palavras, de terceiros. Mas, desta vez, é um pouco diferente, pois é possível ler o relato da acusada. Palavras expostas que permitem, de alguma forma, ouvir, não apenas a ré escravizada, mas a mulher de nome Benedicta.

Ainda em 21 de janeiro de 1867, uma série de perguntas foi feita à ré:

Aos 21 de janeiro de 1867, ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1867[...] perante a ré Benedicta, escrava de João Leite Ferraz de Sampaio, acompanhada de seu curador, Bento Barreto do Amaral Gurgel, e pelo dito juiz foram feitas a dita ré as perguntas seguintes: [...]” (Em transcrição livre)

São questionamentos sobre a origem da ré escravizada. Benedicta declarou que nasceu em Limeira e que era escrava de João Leite Ferraz de Sampaio, tinha 24 anos, era casada e sua mãe chamava-se Genuína, e era liberta. Quanto ao pai: “incógnito”, assim declararam. Ela poderia mentir, ela poderia inventar mil e um motivos para se esquivar das perguntas e dos castigos, mas não o fez. Talvez já não tivesse consciência dos fatos, mas possuía memória o suficiente para lembrar a si própria de que, mentindo ou não, seria castigada. Afinal, era mulher negra escravizada, que futuro teria sentada na cadeira de um tribunal?

Ao ser indagada por qual motivo estaria presa respondeu:

“[...] que veio do sítio de seu senhor, dirigiu-se a casa de Antônio Franco, seu padrasto, [...] contou ao seu referido padrasto que tinha assassinado seus três filhos de nome Barbara, Jeronimo e Joaquim. ” (Em transcrição livre)

Não citam a cor do padrasto de Benedicta, não dá para afirmar se era branco ou negro. Não citam se era livre ou escravizado, mas apenas que seu nome era Antônio Franco Lopes de Camargo. Ele poderia ter aconselhado a jovem a escapar, mas também deveria ter consciência que fugir era impossível, e que mesmo estando “livre” perante a lei daquela época, ainda seria um “preso” da sociedade. Antônio Franco aconselhou a enteada se entregar, e assim ela fez. Dando sequência ao interrogatório:

Perguntada quando, causa e por qual motivo matou seus três filhos, em que lugar e hora? Respondeu que foi ontem, domingo, as duas horas da tarde, que ela chamou seus filhos levou-os ao canavial [...] e aí, com um cacete, matou-os aplicando as cacetadas na nuca, sendo a primeira na mais velha, e nos outros dois em seguida. E o motivo foi que tendo ela feito uma ‘fugueira’ na terça-feira, voltou apadrinhada com Zeferino de tal[...](Em transcrição livre).

A explicação é longa e confusa. O português arcaico dificulta a compreensão, mas basicamente Benedicta havia fugido, voltou acompanhada por Zeferino e foi “perdoada” pelo “patrão”. Mas no decorrer do processo, vão aparecendo os motivos mais intrínsecos que levaram a ré a apunhalar os três filhos na nuca.

Em seu relato, fica expressa a tortura psicológica que sofria, tramada pela esposa e a filha de João Sampaio. Diziam as senhoras moças que o escravagista – proprietário de Benedicta – mandaria tirar os ferros de um dos escravizados e colocaria nela. Todo sofrimento que já circundava a mãe escravizada não era suficiente, na Casa Grande as ameaças a castigos eram constantes. A ré cita, ainda no depoimento, que quando a “sua senhora” passava a odiar um escravizado, ela não o vendia para se livrar da presença, mas, pior, passava a castiga-lo. E aqui aparece o nível de sadismo cotidiano.

Benedicta declara que realmente viu João Sampaio, “seu senhor”, tirando um escravizado do castigo e levando consigo o ferro. Ela julgou que seria a próxima a ser castigada, ou, algo ainda pior, poderia ser vendida e apartada dos filhos, que nunca mais veria novamente.

Após preliminares, o processo continua com as testemunhas. A primeira era ninguém mais, ninguém menos que João Sampaio, o senhor de escravizados:

João Leite Ferraz de Sampaio, de cinquenta anos, casado, lavrador, natural de Itu e morador nesta; [...] Respondeu que dia antes, tendo ele castigado a ré com palmatoria, esta desapareceu, e quatro dias depois disto apareceu [...](Em transcrição livre)

O testemunho é longo e o começo já é trágico. A palmatória era um instrumento de madeira – praticamente uma colher de pau gigante – e era usada para castigar com pauladas a mão de escravizados. A eficácia em crueldade era tão grande que poderia causar bolhas, quebrar ossos ou deformar a mão. E foi esse modo de tortura que João Sampaio aplicou em Benedicta, como ele próprio confirmou no testemunho.

Sampaio finaliza o depoimento, dizendo que Benedicta fugira novamente, levando consigo os filhos, que foram encontrados mortos no canavial e atribuía a culpa disso tudo a ela, porque ela teria “mal gênio”, insinuando que Benedicta não possuía consciência plena de seus atos e que não tinha malícia.

Outra testemunha, um homem escravizado de nome Ygnacio também deu sua versão do relato:

Ygnacio, de quarenta anos, escravo de João Leite Ferraz de Sampaio, casado, natural de Itu, mora em companhia de seu senhor [...] Respondeu que no domingo, 20 do corrente, ele fora chamado por seu senhor na fazenda da Dona Antônia, onde se achava trabalhando, para afim de ir procurar pela ré que havia desaparecido com seus três filhos [...] Encaminhou-se pelo cafezal que fica próximo a fazenda, [...] encontrou vestígios de se ter arrastado alguém por ali, e com efeito, logo adiante, deparou com os cadáveres dos filhos da ré [...] disse ainda que não podia ser outra pessoa, que todos os escravos da casa sem exceção, estimavam muito a essas crianças, e que por isso atribuía que fosse ela mesma a autora. [...](Em transcrição livre)

O feitor da fazenda foi intimado a depor, mas estava ausente. Thereza, esposa de Ygnacio, é a terceira pessoa a depor:

Thereza, escrava de João Leite Ferraz de Sampaio, de 29 anos, casada, natural da Limeira, disse ser cunhada da ré. [...](Em transcrição livre)

A afirmação de Thereza sugere que Ygnacio pudesse ser irmão de Benedicta, mas não há provas documentais que comprovem o fato. Ela, portanto, fornece informações preciosas para formar esse quebra-cabeça:

Respondeu que em uma quinta-feira, sua Senhora ficara zangada com a ré, por não prover rango, digo, haver lavado toda a roupa que levara ao rio, em virtude disto sua Senhora querendo castiga-la ela fugiu, aparecendo apadrinhada dias depois, e sendo relevada do castigo, passara envergonhada de seu procedimento o dia de sábado e domingo, até meio dia, hora em que desapareceu com seus três filhos, e sendo pressentida a sua falta, seu senhor mandou chamar seu marido Ygnacio que se achava na fazenda de Dona Antônia e ordenou que este fosse procurar a ré que tinha fugido. [...](Em transcrição livre)

Thereza termina afirmando ter certeza que Benedicta matara os filhos, e que fez isso não só por ter “juízo fraco”, mas por ter problemas decorrentes do parto e que fazia dois dias que recusava a se alimentar.

Thereza e Ygnacio negam, em depoimento, que a “sua senhora” tratasse mal os escravizados. Mas, aqui, paira a dúvida: se falassem que sim, o que lhes esperava?

Aparecem mais testemunhas, dessa vez em favor de Benedicta. Eles declaram o que sabem: que a ré matou os filhos, porque teve o que se conhece hoje por “surto” em decorrência de ameaças proferidas pela sinhá e pela sinhazinha.

Manoel José Lopes Carvalho, o oficial de justiça, alega que Benedicta lhe confessou que matou os três filhos, utilizando um pedaço de pau e que só fez isso pois “sua senhora moça” (a filha dos fazendeiros) estaria lhe caluniando, atribuindo que a mesma tivesse relações amorosas ou ilícitas com o feitor da fazenda:

“[...] disse lhe mais a ré, que cansada de sofrer, por tudo deu sumir-se da fazenda, mas que tendo dó de ali deixar seus filhos resolveu mata-los. Como de fato o fez, depois de que veio para esta cidade apadrinhar-se com a mãe que aqui mora e que seu padrasto achou melhor entrega-la a prisão [...](Em transcrição livre)

Após uma série de anexos documentais passando mandado, citando testemunhas e intimando, o processo-crime tem as perguntas do promotor público de justiça:

Requeiro ao meritíssimo juiz, antes de tudo, o auto de qualificação da ré que devia ter sido feito logo que esta compareceu em juízo [...] assim como a pergunta da 1° testemunha informante João Leite Ferraz de Sampaio, senhor da ré, afim de verificar se é exato o que diz a ré no seu auto de perguntas [...] se é verdade que dia seguinte em que aparecera a ré apadrinhada, mandou ele tirar o ferro de um dos escravos, e se era para colocar na ré. Se tirou a ré de um serviço em que trabalhara ela, para outro, e se recomendou-lhe que fosse para a cozinha e não saísse de casa, se é verdade que uma de suas filhas dissera a ré que ele, Ferraz, mandou tirar o ferro para colocar nela, ré. São estas as perguntas das quais não se pode prescindir. Requeiro também a inquirição do feitor, que não foi encontrado. [...] Constituição, 30 de janeiro de 1867, o promotor público, Raymundo da Motta d’Agnedo Correa. (Em transcrição livre)

Em interrogatório, João Sampaio negou todas as perguntas inquiridas pelo promotor público. Novamente, Benedicta é interrogada, sua voz é ouvida novamente, e ela permanece com o mesmo discurso, certa do que diz:

Respondeu que cometeu o crime em virtude dos maus tratos ou calunias que recebia de sua senhora, suponha que ela, ré, intrigava com o feitor sua mesma senhora, senhor e mais pessoas da casa. Que quando cometeu o crime fora com a intuição de ser vendida [...], mas não querendo que seus filhos ficassem pertencendo a seu atual senhor, os matou [...](Em transcrição livre)

No dia 2 de fevereiro de 1867 – dez dias depois do início do ocorrido –, começam a culpar Benedicta pelo assassinato dos filhos e colocam seu nome no “hol dos culpados”,  deixando-a permanentemente presa.

No meio do processo, uma declaração:

“[...] sendo também certo que estando a ré no estado de gravidez, como prova o documento junto, não pode ser julgada em acusação por crime de pena capital, senão de quarenta dias depois do parto em diante [...]”

Benedicta estava grávida, o que dá para supor que este seria o seu quarto. Meses mais tarde, em 5 de julho daquele mesmo ano de 1867, de forma mais formal, o médico Eulálio da Costa Carvalho – o mesmo que havia feito o corpo delito das crianças mortas –, atesta a gravidez da ré, mãe escravizada:

Atesto sob juramento que Benedicta, escrava de João Leite Ferraz de Sampaio, presa na cadeia desta cidade, acha-se em época adiantada de gravidez, que data de oito meses ou mais ou menos. Constituição, 5 de julho de 1867. Eulalio da Costa Carvalho (Em transcrição livre)

E era uma menina:

Benedicta, escrava de João Leite Ferraz de Sampaio, que se achava grávida, deu à luz a uma filha no dia vinte e três, pela manhã. [...]

Benedicta deu à luz na cadeia. A partir desse registro, não tornam a citar a mais recente filha, o paradeiro da criança não é declarado nos documentos, talvez tenha ido para a guarda de João Sampaio, que possivelmente tenha a tomado como escravizada – a Lei do Ventre Livre, que libertava os bebês nascidos de escravizadas, só viria em 1871.

Eis que chega o julgamento final, composto por 48 jurados, todos homens brancos:

Deferido o juramento aos doze juízes de fato, e achando-se a ré Benedicta livre de ferros e sem coerção alguma, o juiz de direito passou a interroga-la de modo seguinte: [...]

Benedicta manteve o mesmo discurso, expôs os sentimentos e motivos que a levaram a assassinar os três filhos. Mas algo diferente capta a atenção:

“[...] perguntado por que estava fora de seu juízo, se em consequência de embriagues ou de moléstia? Respondeu que nem por uma, nem outra coisa, mas sim pelo receio de ser castigada, e que nutria esse receio pelas razões que passa a expor: - Lavadeira, como era da casa, recebeu das mãos de seu marido Bento um baixeiro que pertencia ao feitor da casa, para ser lavado; sua senhora sabendo que esse baixeiro estava em seu poder, desconfiou que ela o tivesse recebido das mãos do feitor, com quem supunha que ela respondente entretinha relações, prometeu castiga-la. [...]” (Em transcrição livre)

Benedicta cita duas pessoas importantes, que durante todo o processo são apenas citadas. Uma delas é lembrada apenas uma única vez, quando o oficial de justiça recebe um oficio solicitando que o mesmo intime Bento, o marido de Benedicta. Em outras inúmeras vezes, o feitor é citado, mas ele não se encontrava em Piracicaba durante o processo. Estaria em Limeira. São duas testemunhas de extrema importância, que poderiam atribuir peças ao quebra-cabeça, porém não aparecem em nenhum momento. Se Thereza e Ygnacio, escravizados por João Sampaio, compareceram ao julgamento, por qual motivo Bento, marido de Benedicta, não deu as caras?

Fora dos arquivos da Câmara, pode estar a resposta, em nota no Jornal Correio Paulistano:

Escravo fugido. De João Leite Ferraz de Sampaio da cidade da Constituição, fugiu um escravo crioulo, de nome Bento, no dia 20 de janeiro de 1867, com os sinais seguintes: alto, bem preto, pouca barba, tem um sinal de golpe na garganta, não tem unhas nos pés, é trabalhador de roça, e entende de oficio de pedreiro, tem os cabelos grenhos. Saiu com tenção de assentar praça como voluntario. Quem prendê-lo e leva-lo ao seu senhor, ou dele der notícias certas será bem gratificado.

Bento, o marido de Benedicta, fugiu no exato dia em que ela assassinara os três filhos, no exato dia em que, segundo ela, das mãos dele, recebeu uma peça pertencente ao feitor da fazenda para ser lavada. A data do jornal é 23 de abril de 1867 – meses depois do ocorrido – e a mesma nota foi publicada mais de 20 vezes. Se foi capturado, ou não, é impossível saber. O motivo pelo qual o feitor teria se ausentado também é uma dúvida que paira sobre os fatos ocorridos 157 anos atrás.

Prosseguindo o julgamento, Benedicta afirma ter matado os filhos a pancadas na cabeça. Não se opôs às testemunhas e, ao ser indagada se poderia alegar algo que provasse ou justificasse a inocência, atribui novamente a culpa à esposa de João Sampaio:

“[...] respondeu que tem e é que sua senhora, quando toma birra de algum escravo, é por demais rigoroso, e não os costuma vender, e que ela temendo-se de seu futuro e desesperada viu-se na necessidade de cometer as mortes já referidas, o que ela não pretendia fazer. Perguntado se tinha mais alguma coisa a declarar ou esclarecer? Respondeu que não. [...](Em transcrição livre)

Durante todo o processo, a esposa de João Sampaio é apenas citada como “sua senhora”, em nenhum momento ou nome é mencionado.

Após as exposições, homens brancos, livres e escravocratas, julgam e deliberam a respeito de uma mulher escravizada pelos senhores daquela sociedade. São eles que dão o veredito sobre o que achavam, ou não, cabível a uma mulher escravizada que assassinara os três filhos e que justificava o feito por estar em pânico, por ter sido torturada e por saber que seria torturada novamente, não importa o que fizesse.

A sentença:

“Em conformidade com as decisões do júri, julgo a ré Benedicta, escrava de João Leite Ferraz de Sampaio, incursa no artigo 193, do código criminal, e a condeno a doze anos de prisão com trabalho; mas visto que é escrava, comuto essa pena na de trezentos açoites, na forma do artigo sessenta do mesmo código, e a trazer um ferro ao pescoço por espaço de três anos, ao que se obrigará por termo seu senhor, que, além disso, pagará às custas da causa. Sala das sessões do júri, na Constituição, 10 de setembro de 1867.(Em transcrição livre)

Qualquer pessoa com o básico conhecimento a respeito do período escravagista no Brasil, já prevê e espera que a história não termine bem. Benedicta sabia disso, os senhores de escravizados também sabiam. Em nenhum momento, o testemunho da ré se contradiz, em nenhum momento é relatado que ela se excedeu ou tenha causado algum transtorno durante o julgamento. O processo-crime se encerra com o julgamento final.

Se Benedicta morreu durante as trezentas chibatadas, não é possível saber. Se sobreviveu e retornara à fazenda de João Sampaio, carregando preso ao pescoço um utensílio de tortura durante três anos, também é impossível determinar.

A verdade é que uma mulher escravizada, temia por si e pelos filhos, como fugir era impossível, resolveu findar a prole. A morte, para muitos escravizados, era a única saída. Durante todo o julgamento, ela foi ouvida, mas não compreendida.

Foram necessários 157 anos para que a voz de Benedicta pudesse ser ouvida por pessoas que não a julguem. Mais de um século e meio depois, ecoa a voz da mãe escravizada. Posta como ré em 1867, hoje ela é testemunha da História. (Texto: Gabriel Tenório Venâncio, estagiário de História do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo)

ACHADOS DO ARQUIVO - A série "Achados do Arquivo" se pauta na publicação de parte do acervo do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo, criada pelo setor de Documentação, em parceria com o Departamento de Comunicação Social, com publicações no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo da Casa de Leis.



Revisão:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337


Achados do Arquivo Documentação

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