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15 DE MARÇO DE 2024

Não jogarás! A proibição das casas de jogos na Vila da Constituição


Em meados do Século 19, os legisladores da Piracicaba daquela época se mobilizaram para proibir a atuação das casas de jogos



EM PIRACICABA (SP)  

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“Os jogadores de cartas”, pintado pelo impressionista Paul Cèzanne, reforça o contexto do carteado nas interações sociais entre o final do Século 19 e o começo do Século 20



O temor de eventuais ameaças à “constituição familiar” não é algo recente nos discursos de autoridades políticas e militares do Brasil. Na pacata Vila da Constituição – a Piracicaba de meados do Século 19 – a proibição das “casas de tavolagem”, atualmente conhecidas como “casas de jogos”, foi assunto de determinação dos legisladores daquela época.

Preservados pelo Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba, trechos documentais tratam do combate a jogos que, para as autoridades, consistiam em “passatempo perigoso”. O relato destes documentos integra a série Achados do Arquivo desta semana.

No dia 12 de abril de 1855, os membros da Câmara de Vila da Constituição relatam ao presidente da Província (na época, José Antônio Saraiva) o recebimento do ofício datado de 22 de fevereiro, onde requisitava dos legisladores, por meio de posturas, informações a respeito de um jogo denominado “A Primeira”. Havia disso relatado ao presidente, pelo próprio subdelegado de polícia da Vila, os rumores sobre este jogo, que, segundo ele, ameaçava ruir a estrutura das famílias honestas:

“A Câmara Municipal desta Vila recebeu o ofício que Vossa Excelência se dignou mandar-lhe em data de 22 de fevereiro, recomendando a ela providenciar por meio de Posturas a respeito do jogo denominado ‘A Primeira’, que aqui se acha muito introduzido, ameaçando a ruína de famílias honestas, segundo representou à Vossa Excelência o subdelegado de Polícia da Vila, e em consequência desta recomendação a Câmara tem a honra de remeter à Vossa Excelência os inclusos dois artigos de Posturas para serem aprovados pela Assembleia Legislativa Provincial, ou por Vossa Excelência, se forem julgados convenientes.” (em transcrição livre)

Em concordância com as ordens do presidente da Província, os membros então remetem a ele os artigos de posturas concernentes às casas de jogos, onde cerceiam pela lei os jogos que eles consideravam como proibidos, envolvendo pagamentos de multa e até prisão no caso de infração das leis:

A Comissão a quem foi presente um ofício que o Exímio Governo da Província dirigiu a esta Câmara em data de vinte e dois de fevereiro último, recomendando que ela providenciasse por meio de Posturas a respeito do jogo denominado ‘A Primeira’, visto que o subdelegado de Polícia desta Vila representou-lhe que se achava aqui muito introduzido este jogo, e que ameaçava a ruína de famílias honestas. A Comissão, examinando este negócio, oferece à consideração da Câmara os seguintes artigos de posturas:

Artigo 1: Todo aquele que possuir casa pública de tavolagem para jogos proibidos satisfará a multa corpórea de quinze dias de prisão, a pecuniária de sete mil e quinhentos réis e o duplo nas reincidências.

Artigo 2: São jogos proibidos A Primeira, Pacau, Trinta e Um, Lasquinê e todos os jogos de parada. Posto em discussão, foi aprovado, não só o parecer da Comissão como também os artigos de Posturas.” (em transcrição livre)

JOGOS PROIBIDOS - O mencionado jogo “A Primeira”, motivo inicial para as proibições, se chamava originalmente “La Primiera” e era um jogo de cartas (hoje obsoleto) originário da Itália, bem como é também um método de pontuação no jogo de Scopa e suas variantes. Criado no final do Século 15, foi o ancestral do poker atual e era jogado com quatro cartas ao invés de cinco, sendo muito popular na Europa até finais do Século 18.

Neste jogo, jogava-se de 4 a 8 pessoas, cada um por si, e cada um com 4 cartas. O objetivo era obter a combinação de cartas que possuísse o maior valor, sendo as cartas Sete (21 pontos), Seis (18 pontos), Às (16 pontos), Cinco (15 pontos), Quatro (14 pontos), Três (13 pontos), Dois (12 pontos) e as figuras do Rei, Cavalo, Dama e Valete (10 pontos).

Eram três as combinações possíveis:

1) Primiera: soma de quatro cartas de naipes diferentes.
2) Cinquantacinque: ter as cartas 7, 6 e Às do mesmo naipe concede pontuação de 55, não contando a quarta carta; se a quarta carta for do mesmo naipe tem-se também um Flusso.
3) Flusso (ou Flussi): soma de quatro cartas de um mesmo naipe.

A combinação vencedora é a que somar mais pontos. Em caso de empate usa-se o método do naipe de maior força, sendo eles, em ordem decrescente: copas; ouros; paus; e espadas.

Em relação ao Pacau, não foram encontradas informações detalhadas, apenas definições de que era “um antigo jogo de cartas”, bem como é um outro nome dado ao atual pebolim. Mas o jogo citado nos documentos provavelmente se refere a um jogo de cartas.

O Trinta e Um, ou “Trentuno”, também é de origem italiana, podendo ser jogado entre duas a sete pessoas, sendo quatro o ideal. O objetivo é marcar 31 pontos com cartas do mesmo naipe ou que tenham uma pontuação próxima a este valor para se vencer uma partida. Quando se usam “vidas” (fichas/dinheiro), vence quem restar com uma vida após várias rodadas. Os jogadores decidem previamente o número de vidas a serem utilizadas, sendo geralmente 3 ou 4. Se utilizarem dinheiro, as vidas são moedas de mesmo valor para cada jogador (moedas de 25 centavos, por exemplo).

“Lasquinê” chamava-se originalmente Lansquenet, em referência à grafia francesa da palavra alemã Landsknecht, que significa ‘servo da terra ou país’, aludindo à infantaria mercenária alemã dos Séculos 15 e 16. Embora não haja informações de onde surgiu, devido à grafia francesa e outros termos do jogo, pode-se conjecturar que é originário da França. No entanto, também é possível encontrar formas semelhantes sob o nome Zecchinetta.

Para jogar, o carteador (ou banqueiro) aposta uma determinada quantia, que deve ser inicialmente igualada pelo jogador à direita do carteador e assim por diante. Quando a aposta é igual, o carteador vira uma carta e coloca-a à sua direita, para a mesa ou para o restante dos jogadores, e outra carta à sua frente para a banca. Ele então continua virando as cartas (deixando as duas primeiras cartas visíveis), até virar uma carta que tenha o mesmo valor de algumas das duas primeiras cartas. Por exemplo, se o cinco de ouros foi a carta distribuída pela banca, então quaisquer outros cinco, independentemente do naipe, farão a banca vencer. Se uma carta com o valor da carta for retirada primeiro da mesa, a banca perde e o próximo jogador à direita torna-se a banca e prossegue de maneira semelhante.

Quando a banca vira a sua carta, ele pode recuperar a sua aposta e passar a banca; ou você pode deixar sua aposta na mesa, que será duplicada se a banca vencer. A banca pode continuar enquanto as cartas que vira estiverem a seu favor – com a opção de, a qualquer momento, desistir da posição de banca e retirar-se do jogo por enquanto.

Se proceder desta forma, o jogador a quem passa o banco tem a opção de continuar no mesmo ponto onde o recebe. O pote pode ser composto pelas contribuições de todos os jogadores em determinadas proporções. Os termos usados ??para igualar a aposta são “vou ver” (à moi le tout) e je tiens. Quando aparecem jumelle (gêmeos), ou seja, quando cartas semelhantes são viradas para os dois lados, a banca fica com metade do pote.

Certamente, estes jogos de cartas foram trazidos pelos imigrantes ao Brasil e acabaram se enraizando na cultura popular. Alguns dos temores que levaram à proibição no passado continuam parte do cenário político-ideológico do presente, o que mostra a atemporalidade – para o Bem ou para o Mal – de certos discursos e de algumas soluções. (Texto e pesquisa: Brenno Rodrigo Monteiro, estagiário de História do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba)

ACHADOS DO ARQUIVO - A série "Achados do Arquivo" se pauta na publicação de parte do acervo do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo, criada pelo setor de Documentação, em parceria com o Departamento de Comunicação Social, com publicações no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo da Casa de Leis.



Revisão:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337




Achados do Arquivo Documentação

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