22 de agosto de 2025

Tiro no Catete e votos de pesar: o impacto da morte de Getúlio Vargas

Para marcar mais um 24 de agosto, data do suicídio do ex-presidente, série Achados do Arquivo destaca a repercussão do fato em sessões da Câmara

Texto: Bruno de Oliveira

Poucos minutos após os relógios marcarem 8h30 da manhã, no dia 24 de agosto, em 1954, um barulho alto e seco de tiro ecoou pelo Palácio do Catete, então sede do governo federal, no Rio de Janeiro. 

No quarto presidencial, olhos baços, já quase sem vida, miravam o teto do aposento. O corpo caía deitado com a metade inferior para fora da cama. Inerte. Um buraco chamuscado por pólvora bem na altura do coração manchava de sangue o pijama listrado de Getúlio Vargas. O revólver Colt calibre 32, com cabo de madrepérola, jazia caído ao seu lado. 

Após ouvirem o estampido que vinha do terceiro andar, a esposa Darcy e os filhos Alzira e Lutero correram em direção ao quarto e, lá chegando, constataram que o presidente tinha cumprido a promessa feita dias antes, de que “só morto sairei do Catete”. 

O suicídio de Getúlio foi o desfecho fatal de uma grave crise política que tensionou o Brasil naquele mês de agosto. Piracicaba não ficou fora disso. As proposituras aprovadas pela Câmara, entre agosto e outubro de 1954, são os destaques da série Achados do Arquivo, produzido numa parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivos, ligado ao Departamento Administrativo, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba. 

A REPERCUSSÃO
“Amigo ouvinte, aqui fala o Repórter Esso, testemunha ocular da história: E atenção: acaba de suicidar-se, em seus aposentos no Palácio do Catete, o presidente Getúlio Vargas.” Essas foram as palavras proferidas por Heron Domingues, no noticiário de radiojornalismo naquela manhã.

Em edição extra, os jornais “O Globo” e “Última Hora” noticiavam, respectivamente: “Suicidou-se o sr. Getúlio Vargas” e “Matou-se Vargas!”. “O Globo” destacava ainda que “o chefe do governo desfechou um tiro no coração nos seus aposentos”; e o “Última Hora” acrescentava que “o presidente cumpriu a palavra: ‘Só morto sairei do Catete!’”.

Pelos dias seguintes, esse foi o assunto mais falado no país. Em todos os estados, capitais e cidades do interior.

Em Piracicaba, no dia 30 de agosto, segunda-feira, a Câmara Municipal realizou Sessão Ordinária e, na ocasião, deram entrada três proposituras que, de uma forma ou de outra, faziam menção à morte de Getúlio. Foram apresentados um projeto de resolução e dois requerimentos.

O QUADRO
O Projeto de Resolução nº 02/1954, apresentado pelo vereador João Batista Vizioli e mais cinco vereadores, propunha “aquisição de quadro de Getúlio Vargas para colocação na Sala das Sessões da Câmara”. 

O art. 1º da propositura assim dispunha:

“Artigo 1º A Câmara Municipal de Piracicaba, homenageando o grande brasileiro e verdadeiro iniciador da assistência social no Brasil, Dr. Getúlio Dorneles Vargas, colocará em lugar evidente da Sala das Sessões, um quadro com a sua fotografia, formato grande”.

Os autores requereram ainda que “seja o projeto supra discutido e votado sob regime de urgência, com dispensa dos trâmites regimentais”, o que de fato aconteceu, eis que a proposta foi aprovada em 1ª e 2ª discussões naquela mesma sessão, resultando na Resolução nº 02/1954.

Quanto ao quadro com a foto de Vargas, este pode ser visto em diversas imagens do acervo fotográfico da Câmara, em diferentes momentos da história da Casa.

OS VOTOS DE PESAR
O Requerimento nº 167/1954 foi apresentado pelo vereador Benedito Glicério Teixeira e mais oito vereadores e tratava sobre “votos de pesar pelo passamento do ex-presidente Getúlio Vargas”.

O teor da proposta era o seguinte:

“É com o coração coberto de luto que ocupo hoje esta tribuna, para apresentar os meus profundos sentimentos, e os sentimentos de minha bancada do P.S.P. e P.T.B., sobre o desaparecimento do grande homem, o Eminente Ex-Chefe da Nação, Getúlio Vargas, desaparecido do nosso convívio e contra a vontade de milhões de brasileiros que o levaram a governar a Nação.

Sobre os acontecimentos que levaram Sua Excia. a praticar tal gesto, não se justifica, pois venho acompanhando o desenrolar dos fatos, através das notícias dos jornais e felizmente nenhuma referência fazem da responsabilidade direta ou indireta do eminente chefe Getúlio.

Segundo as notícias dos jornais, o inquérito ainda não está concluído e posso afirmar que Sua Excia. Getúlio Vargas não é culpado pelo triste acontecimento da morte do Oficial da Aeronáutica. Caluniado e traído, sem direito de defesa, levou sua Excia. Getúlio Vargas a praticar um ato como o que é do conhecimento público. ‘Morre Inocente’. ‘A Nação está de luto’.

No pé em que nos encontramos, desafio possam os seus adversários e seus inimigos encontrar um outro presidente cheio de boa vontade que possa governar o nosso País. Um punhado de brasileiros talvez se regozije com a sua ausência, mas o certo é que a Nação, os bons brasileiros, se cobrem de luto.

Deus o conserve na Divina Paz, porque a memória de Getúlio ficará para sempre nos corações de todos, principalmente nos corações dos humildes e dos trabalhadores do Brasil.

Senhor Presidente:

Requeiro fique consignado na ata dos nossos trabalhos de hoje um voto de profundo pesar, e que nesse sentido se oficie ao Exmo. Sr. Vice-presidente da República, agora no exercício da Presidência, e a Exma. Família enlutada.”

Na esteira desse requerimento de pesar e, de forma a complementá-lo, foram apresentados mais três requerimentos, todos apensados ao mesmo processo do requerimento principal. Essas três propostas “acessórias” são as seguintes:

Requerimento nº 168/1954, também apresentado pelo vereador Benedito Glicério Teixeira, com o seguinte teor:

Requeremos, na forma regimental, e em face da situação especialíssima da morte do Exmo. Sr. presidente da República, inversão da Ordem do Dia, para que como primeiro item da pauta seja votado o Requerimento de pesar apresentado no Expediente pelo passamento do ilustre brasileiro.”

Requerimento nº 169/1954, de autoria dos vereadores João Batista Vizioli, Sidane Antonio Sturion, Joaquim Rocha Campos e Oscar Manoel Schiavon, que assim dispunha:

“Requeremos seja dado à publicidade o Requerimento do vereador Benedito G. Teixeira, na íntegra, sobre a homenagem a Getúlio Vargas.”

Requerimento nº 170/1954, proposto pelo vereador Sidane Antonio Sturion e outros cinco vereadores, solicitando o seguinte:

“Requeiro, ouvido o Plenário, que em homenagem ao passamento do Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, ex-presidente da República, sejam suspensos os trabalhos da Câmara na data de hoje, votando-se, ?lém do Requerimento de pesar que, segundo nos foi dado saber, deverá ser apresentado pelo ilustre vereador Dr. Benedito Glicério Teixeira, qualquer outro assunto referente ao homenageado.”

Em essência, esses três requerimentos alteravam o andamento daquela sessão de 30 de agosto, ao proporem inversão da pauta, maior publicidade ao voto de pesar e suspensão de todos os demais trabalhos em benefício da apreciação somente de matérias que viessem a tratar da morte de Vargas. Embora “acessórios”, esses requerimentos possibilitam que hoje se dimensione o enorme impacto dos acontecimentos por aqueles dias de 1954.

Os quatro requerimentos – o principal, nº 167 e os demais, nº 168, 169 e 170 – foram aprovados na sessão daquele dia e, já no dia seguinte, 31 de agosto, o presidente da Câmara, vereador Domingos José Aldrovandi, encaminhou cópia do Requerimento nº 167 ao então recém empossado e novo presidente da República, bem como à família de Getúlio, através dos Ofícios nº 367/1954 e 368/1954.

O Ofício nº 367/1954 trazia o seguinte teor:

“Exmo. Sr.
Dr. João Café Filho
DD. Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil

RIO DE JANEIRO
A Câmara Municipal de Piracicaba, profundamente consternada diante do infausto acontecimento da morte do Exmo. Sr. Dr. Getúlio D. Vargas, eminente ex-presidente da República brasileira, vem perante V. Excia. externar as suas condolências pelo evento que enlutou a Nação Brasileira, tendo consignado na ata dos trabalhos da sessão de 30 do corrente, um voto de sentido pesar, proposto pelo sr. vereador Benedito Glicério Teixeira e aprovado por unanimidade pela Câmara, cuja cópia tenho a honra de anexar e passar às mãos de V. Excia. 

Na qualidade de presidente da Edilidade de Piracicaba, associo-me, tomado de sentimento, ao voto proposto e apresento a V. Excia. as expressões de profundo pesar.”

Já o Ofício nº 368/1954 assim dizia:

“Exma. Sra.
D. Darcy Sarmanho Vargas e Exma. Família

RIO DE JANEIRO
Com o presente transmito a V. Excia. e Exma. Família uma cópia do Requerimento nº 167/54, de autoria do sr. vereador Benedito Glicério Teixeira e outros, unanimemente aprovado pela Câmara Municipal desta cidade, prestando sentida homenagem pelo passamento do Exmo. Sr. Dr. Getúlio D. Vargas, digníssimo ex-presidente da República e preclaro chefe dessa ilustre família. 

Associando-me ao voto proposto, desejo, na qualidade de presidente desta Casa Legislativa, tributar também ao nobre extinto meus sentimentos de profundo pesar, extensivos a todos os dignos membros da família.”

A CARTA-TESTAMENTO
Por último, apresentado pelo vereador José Soubihe Sobrinho e mais seis vereadores, o Requerimento nº 171/1954, que solicitava a “Transcrição em ata da carta do Dr. Getúlio Vargas”. A propositura se referia à chamada carta-testamento escrita por Getúlio pouco antes de sua morte e encontrada ao lado de sua cama. O texto era o seguinte:

“Requeiro, na forma regimental, conste da ata de nossos trabalhos desta data, na íntegra, a carta deixada por Sua Excia. o ex-presidente da República, Dr. Getúlio Vargas e publicada pela imprensa brasileira.”

Na folha seguinte a que consta o texto do requerimento há, escrito à mão, possivelmente pelo vereador autor da proposta, José Soubihe Sobrinho, um trecho da primeira versão da carta de Getúlio, escrita no dia 13 de agosto. Esse trecho diz o seguinte:

“À sanha dos meus inimigos deixo o legado da minha morte. Levo o pesar de não ter feito pelos humildes tudo aquilo que desejava. Getúlio Vargas.”

Na sequência dos documentos há duas páginas do jornal “Última Hora”, também possivelmente trazidas pelo vereador Soubihe Sobrinho, que abordam, em seu inteiro teor, vários tópicos referentes à morte do presidente. Na primeira dessas duas folhas de jornal está reproduzida, no meio da página, de forma integral, a carta-testamento definitiva, objeto do requerimento proposto.

O requerimento, todavia, ao contrário das outras proposituras relativas ao tema e apresentadas naquela mesma sessão, não foi aprovado naquele dia.

Um despacho do presidente da Câmara, feito na parte de cima da folha onde consta o texto da proposta, determina que o requerimento receba parecer e designa, para tanto, os vereadores Benedito Glicério Teixeira, João Batista Vizioli e João Sabino Barbosa. Os pareceres constam nas duas folhas seguintes às páginas do jornal “Última Hora”. Emitidos, por cada um dos três vereadores, em datas diferentes, trazem as seguintes manifestações:

“Designado que fui, pelo digno presidente desta Câmara, para emitir parecer no Requerimento nº 171/54 (transcrição em ata dos nossos trabalhos) da carta do eminente e sempre lembrado ex-presidente da República, Dr. Getúlio Vargas, estamos de pleno acordo com o Requerimento.
Sala das Sessões, 03 de setembro de 1954.
Benedito Glicério Teixeira.

De acordo com o Requerimento a fls.
Sala das Sessões, 08 de setembro de 1954.
João Batista Vizioli.

Na qualidade de membro nomeado pelo sr. presidente para emitir parecer ao processo nº263/54, de autoria do nobre vereador José Soubihe Sobrinho, para transcrição em ata, da carta deixada pelo ex-presidente Dr. Getúlio Vargas, não vemos óbice legal à sua aprovação.
Sala das Sessões, 23 de setembro de 1954.
João Sabino Barbosa.”

De acordo com os documentos do Acervo Histórico, o requerimento só foi posto para deliberação na 32ª Sessão Ordinária, em 18 de outubro de 1954, quase um mês após a data do último parecer e quase dois meses depois do suicídio de Getúlio. 

A demora na tramitação se deve, pelo que se obtém das atas, a uma discussão tida, à época, quanto a autenticidade da carta-testamento.

Na sessão de 18 de outubro, na Ordem do Dia, ao discutir o Requerimento, o vereador João Basílio, “combatendo o requerimento, argumentou que apesar do respeito que lhe merecia o sr. Getúlio Vargas, como autoridade que fora e apesar de respeitar os princípios democráticos que nortearam sempre os atos do cidadão brasileiro, não podia concordar com o requerido, porquanto não havia certeza ainda sobre a autoria do referido documento, conforme opinião de abalizados na matéria. Além do mais, traduzia ele, no seu entender, algo relacionado com uma ação de sua Excia. para impedir que seus adversários viessem a se apoderar do poder, patenteando no final a índole de que estaria imbuído o espírito do ex-presidente, ao afirmar que ‘saía da vida para entrar na História’, afirmação que considerava um contrassenso, pois sua Excia. já figurava na História, não sendo o suicídio o fato que o iria projetar no cenário da humanidade. Sendo referido documento fator de divergências no seio do povo, tendo sido ele publicado por toda a imprensa, e figurando logicamente na História nacional para estudo e análise dos historiadores, não via motivo para que, em caráter demagógico devesse ele ser transcrito na ata da Câmara Municipal. Respeitar-se-ia, dessa forma, a linha de conduta já traçada por este Legislativo, de não se imiscuir em política, e entendia que os que desejassem prestar uma homenagem ao ex-presidente o fizessem em caráter particular, sem compelir a Câmara a fazê-lo”. 

Apartando o orador e defendendo a proposta a qual era autor, o vereador José Soubihe Sobrinho “aventou a ideia de que era um grupo reduzido de pessoas que não acreditavam na autoria do referido documento, assim não pensando a maioria dos brasileiros e, dizendo ainda protestar contra a alegação do orador, que tivesse aproveitado do fato para exploração demagógica”.  

No entanto, logo após a manifestação do vereador Soubihe, o vereador Hélio Penteado de Castro “solicitou licença para se retirar”, o que ensejou o encerramento da sessão por falta de quórum e fez com que o requerimento não fosse votado.

Na Sessão Ordinária seguinte, a 33ª, ocorrida no dia 25 de outubro, o requerimento foi novamente colocado para deliberação na Ordem do Dia. Inscrito mais uma vez para discutir a proposta, o vereador João Basílio reafirmou as declarações expendidas a respeito na sessão anterior, contrárias à transcrição pretendida, por entender necessário primeiramente ficar comprovada a autenticidade do referido documento, “uma vez que há objeções sobre esse particular, e dada a existência de comissão da Câmara Federal designada para essa finalidade.”

Na sequência, usando da palavra, o vereador José Soubihe Sobrinho, autor do requerimento, “combateu vivamente o orador precedente, sustentando ser autêntica referida carta, por estar intimamente ligada à morte do ex-presidente; reafirmou o ponto de vista de que dito documento é histórico e merece figurar na ata dos trabalhos da Câmara, mesmo porque não via crime ou mal algum em que tal se efetivasse, pois, para o futuro, iria servir de análise aos descendentes, iria ser por eles julgado, e certo respeitariam o ato da Câmara, o ato de seus antepassados, que fizeram incluir um documento. Se apócrifo fosse, certamente o viriam a sabê-lo e se original, entretanto, mas não constando da ata, se queixariam de que não quiseram seus (pais), digo, antecessores fosse por eles julgado. Não via, pois, houvesse na transcrição qualquer desonra, qualquer inconveniência, pelo contrário, viria comprovar que Piracicaba se interessara pelo sentido histórico do fato, eis que sempre se mostrara simpática ao sr. Getúlio Vargas, nas diversas manifestações eleitorais em que S. Excia. se apresentara como candidato”.

A ata da sessão registra que “entre o orador e os vereadores Salgot Castillon e João Basílio feriram-se prolongados debates de caráter político sobre a pessoa e gestão governamental do ex-presidente”.

Após esses debates, “passou-se à votação do requerimento, que foi aprovado com quatro votos contrários”.

Em seguida à votação, três vereadores, que votaram contra a proposta, fizeram declaração de voto: Francisco Salgot Castillon, João Basílio e Hélio Penteado de Castro. Este último é o que, na sessão anterior, “solicitou licença para se retirar”, o que, como já afirmado, resultou na não votação do requerimento, eis que a sessão teve que ser encerrada por falta de quórum.

Em suas declarações, os vereadores Basílio e Penteado de Castro se disseram “contrários ao requerimento por não haver sido provada ainda a autenticidade do referido documento”.

Salgot Castillon, por sua vez, se disse “contrário, por entender apócrifa dita carta, e, se assim era, considerava mentiroso o ex-presidente; e, se não apócrifa, assim também o considerava, por não retratar o seu conteúdo a verdade dos fatos”.  

Dos discursos registrados em ata, o que mais chama a atenção é um trecho do vereador Soubihe, já transcrito acima, mas que é válido citar novamente:

“Dito documento é histórico e merece figurar na ata dos trabalhos da Câmara (...), pois, para o futuro, iria servir de análise aos descendentes, iria ser por eles julgado, e certo respeitariam o ato da Câmara, o ato de seus antepassados, que fizeram incluir um documento. Se apócrifo fosse, certamente o viriam a sabê-lo e se original, entretanto, mas não constando da ata, se queixariam de que não quiseram seus (pais), digo, antecessores fosse por eles julgado.”

O ponto de vista do vereador Soubihe se amparava na constatação de que a magnitude do tema era por demais grandiosa para ser desprezada, fosse a carta autêntica ou não. De uma forma ou de outra, o deslindar da História iria se incumbir de revelar os verdadeiros fatos relativos à carta. A única convicção do vereador, e que se mostrou certeira, era que o testamento de Getúlio, historicamente, tinha que ficar registrado nos anais da Câmara. E assim foi feito, como está na ata de 25 de outubro de 1954.

Pela gigantesca dimensão histórica de ambos os documentos, tanto da carta de Vargas quanto da ata da Câmara, que, nesse momento, se consubstanciam num só documento, vale apresentar a transcrição, na íntegra:

“Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”

Getúlio Vargas deixou a vida e entrou na História. E esses documentos percorrem um caminho inverso. Eles ressuscitam da história arquivada e, vivos, adentram novamente, agora através de um novo portal, o inesgotável terreno da História.

Revisão: Erich Vallim Vicente - MTB 40.337
Pesquisa: Bruno de Oliveira