22 DE SETEMBRO DE 2023
Série ‘Achados do Arquivo’ resgata requerimentos protocolados na Câmara, em 1912, pedindo subvenção a escola para a comunidade
Ilustração do abade Charles Michel de l’Épée, referência da comunidade surda na França
Setembro reúne datas importantes para a comunidade surda: 23 é o Dia Internacional da Língua de Sinais; 26 é o Dia Nacional do Surdo – a data marca a fundação, em 1857, da primeira escola de surdos no País, a INES do Rio de Janeiro; e 30 é o Dia Internacional do Surdo e Dia Internacional do Profissional Tradutor e Intérprete. As celebrações do ‘Setembro Azul’ são registros da luta desta população e do preconceito ainda a ser superado.
De seres especialmente escolhidos, considerados místicos no Egito, a “desprovidos de razão” na Grécia, ou afogados no rio Tibre, em Roma, bem como o não reconhecimento como cidadãos (não-oralizados), os surdos sofreram um sem-número de amarguras ao longo da História.
Na edição desta semana da série Achados do Arquivo, o Setor de Gestão de Documentação e o Departamento de Comunicação Social da Câmara resgatam a ata da sessão ordinária de 2 janeiro de 1912, em que aponta um fragmento de reivindicação pela educação para surdos no início Século 20. Naquele dia, deu entrada no Legislativo piracicabano o requerimento de Eugenio Skrause, em que pedia uma subvenção mensal para uma escola de “surdos-mudos” na cidade. Vale pontuar que a terminologia não é mais utilizada. Além de ser pejorativa, a maioria dos surdos não possui problemas na fala.
Mesmo com o traço do preconceito linguístico da época, a reivindicação de Skrause reflete a demanda pelo acesso à educação para os surdos:
“O abaixo assinado brasileiro surdo-mudo, tem frequentado 15 anos um instituto de surdos-mudos em Berlin, onde fez seus estudos por sistemas aperfeiçoadas adquirindo conhecimentos que o habilitam ao ensino primário, constando de leitura, escrita, contabilidade, geometria, geografia e história, aos surdos-mudos, bem como o de diversas línguas; tendo já nesta cidade alguns alunos, cujo aproveitamento é notório, como prova com os atestados inclusos, firmado por pessoas competentes, que assistiram aos exames de dois dos seus alunos, e querendo abrir uma aula nesta cidade para o ensino de surdos-mudos, vem respeitosamente requerer a essa ilustre corporação, para que logo que tenha as aulas abertas e com a frequência de 5 alunos, pelo menos conceda essa ilustra câmara, uma subvenção mensal, estipulada a juízo da mesma. Comprometendo-se o peticionário a receber até 20 alunos e ministrar-lhes o ensino primário, bem como o de línguas a aqueles que desejarem.” (em transcrição livre)
Em sua justificativa, Eugenio destaca a característica social dos surdos de sua época, “alguns dos quais muito pobres”, escreve, e, naquela época, assim como hoje, a posição social era determinante para o acesso ao letramento: “por isso (serem pobres), sem meios de conseguirem instrução primária, tão necessária a vida”, reflete o professor em seu documento.
No mesmo texto, Eugenio cita a situação da educação para surdos, para além do território piracicabano, trazendo um pouco da conjuntura nacional:
“A Câmara Municipal auxiliando a escola que o suplicante pretende fundar, prestará a esses infelizes enorme serviços, qual o de ministrar lhe instrução, por eles tão difícil, visto existir no país, um único instituto para o ensino de surdos-mudos, e esse mesmo em péssimas condições e de difícil acesso.” (em transcrição livre)
Estão também registradas nos arquivos da Câmara duas cartas que testemunham o profissionalismo de Eugenio, de modo que contribuísse e ratificasse seu pedido. Estes documentos foram escritos por Francellino Lazaro de Camargo, pai de José de Camargo Barros, e de Vitaliano Ferraz do Amaral, pai de Vitaliano Ferraz Filho, ambos alunos de Eugenio.
Na carta de Francellino, lê-se:
Venho por meio desta testemunhar-lhe o meu reconhecimento pelo grande proveito que meu filho José de Camargo Barros tem encontrado nas lições que o Senhor lhe tem dispensado; na sua escola para surdos-mudos. O seu método de ensino, a sua paciência e os seus conhecimentos tornam um professor competente digno de estima e consideração dos que querem educar os filhos aos quais a natureza negou o dom do ouvido e da palavra. Apesar de sua modéstia é um dever meu dirigir-lhe a presente carta. [...] (em transcrição livre)
Já Vitaliano Ferraz do Amaral escreveu o seguinte:
Atesto que o professor de surdos-mudos - Eugenio Skrause que fez seus estudos nos institutos de Berlim, aos cuidados do qual [confio] o ensino de leitura, escrita e contabilidade ao meu filho Vitaliano Ferraz Filho, e tem feito com tanta dedicação e competência profissional, que no decurso de quatro e [mais] meses de ensino apresentou um adiantamento surpreendente, que muita [honra] faz a capacidade profissional do digno professor, o qual, além dos materiais de ensino primário, é ainda conhecedor de diversas línguas, que também ensina com proficiência, efetuando também o sistema labial depois dos seus alunos terem alcançado certo grau de adiantamento. Cavalheiro dotado de fina educação e com uma boa disposição aliada a uma paciência admirável no exercício do magistério, ninguém melhor do que ele, poderá dirigir um modesto instituto para surdos-mudos nesta cidade como ele deseja e de cujo efeito não se poderá duvidar. [...] (em transcrição livre)
Tal requerimento, à época, foi encaminhado para a Comissão de Polícia e Higiene, cujo o relator era o médico e vereador Paulo de Moraes Barros. O sobrinho do ex-presidente Prudente de Moraes escreveu o parecer, onde, além dos ganhos sociais para a cidade, analisa o impacto para a região:
“Apesar do número restrito de surdo-mudos neste município, a criação de um instituto para a sua educação seria de reais vantagens e estamos convencidos que faria convergir pra ele um certo número de alunos provenientes dos municípios vizinhos. O número fixado para a concessão da subvenção nos parece muito escasso, não oferecendo nenhuma garantia de estabilidade, condição essencial para que a ação auxiliadora da Câmara Municipal se faça legitimamente sentir. Este número inicial não deve ser inferior a vinte, e só quando atingida esta média de frequência é que a subvenção deve ser concedida, tomando-se por base o subsidio não superior a 30#000 anuais por aluno, sujeita a escola á eficaz fiscalização dos poderes municipais. Em qualquer hipótese a subvenção só poderá ser concedida á começar no exercício vindouro, depois de regulamente votada a necessária verba no orçamento da despesa em tempo oportuna. É o que nos cumpre dizer, salvo melhor juízo. Sala das sessões, 5 de Janeiro de 1912, digamos, de fevereiro de 1912.” (em transcrição livre)
O parecer foi lido e aprovado na sessão de 5 de fevereiro de 1912 – um mês depois de ter sido apresentado por Paulo de Moraes Barros. Porém, não é possível saber se a subvenção proposta por Eugenio teve efetividade no Município. Não há outros vestígios documentais neste sentido. Mas as atas daquele mês de janeiro de mais de um século atrás, são provas cabais do quanto as conquistas das pessoas com deficiência são lutas seculares. São posicionamentos que demandam esforço e consciência sobre direitos.
Achados do Arquivo – A série "Achados do Arquivo" é uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo e de Documentação, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba. Ela traz publicações semanais no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo do Legislativo. (Texto com colaboração da arquivista Dayane Soldan)
Anexos
requerimento (eugenio skrause) e parecer (paulo de moraes) - original.pdf