As pegadas deixadas pela população negra ao longo da história nos espaços e nas memórias do interior paulista tiveram um momento de resgate durante a exibição de uma webserie produzida pelo Coletivo Rotas Afro e por uma roda de conversa promovida pela Escola do Legislativo, da Câmara Municipal de Piracicaba, na última sexta-feira (16), no Salão Nobre da Casa.

Produzida e gravada em cidades da região, como Piracicaba, a webserie “Batuques, Quilombos e Matracas: Memórias Afro-brasileiras no interior paulista” traz à tona o ressignificado de muitas heranças deixadas pelos ancestrais afro-brasileiros neste território. Disponível no youtube, a webserie é composta por quatro episódios que lançam luz sobre o legado da história, cultura e resistência desse povo, que até os dias de hoje ainda está em busca de suas raízes após um processo de apagamento histórico.

Além da exibição da webserie, a Escola do Legislativo também proporcionou aos participantes a roda de conversa com o tema “Cenários Pós-Abolição e o Resgate das Memórias Afro-brasileiras”, conduzida pela doutora em História Social, Marilda Soares e pela coordenadora do Rotas Afro e guia de turismo, Julia Madeira. A atividade foi alusiva à comemoração aos 137 anos da abolição da escravatura, em 13 de maio, assim como ao aniversário de 124 anos da Associação Beneficente 13 de Maio, o terceiro clube negro mais antigo do Brasil.

Marilda Soares descreveu o cenário pós-abolição, sem políticas públicas que promovessem os libertos em 1888 para que tivessem uma inserção igualitária na sociedade. “A abolição não aconteceu apenas com a assinatura da Lei Áurea, mas foi fruto de um longo processo que começou com os movimentos de libertação”, explicou. “Embora após 14 de maio, os negros tenham continuado lutando praticamente sozinhos por sua identidade”. Ela lembrou que um censo realizado no Brasil em 1886 apontava que havia cerca de seis mil pessoas escravizadas em Piracicaba. E que muitos deles se reuniram para comemorar o fim da escravidão na atual Igreja de São Benedito, que fica ao lado da Câmara e, na época, configurava-se como a Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

Clube 13 de maio – Alguns anos depois, em 1901, essa comunidade se reuniu para fundar a Sociedade Beneficente Antonio Bento, o atual Clube 13 de Maio, justamente com o intuito de preencher a lacuna da falta de políticas públicas para o povo negro recém-liberto, como a instalação de uma escola de alfabetização para adultos. O clube também representava uma forma de resistir ao processo de apagamento da história desse povo. “Como espaço de memória de 124 anos, o Clube 13 de Maio deve ser olhado com responsabilidade pela sociedade e poderes públicos”, afirmou a professora. “Tem sido um trabalho árduo manter aquele espaço e, se não mantivermos esse patrimônio, as gerações futuras não vão conhecer essa história”.

Durante a roda de conversa, Julia Madeira contou a trajetória do Coletivo Rotas Afro, que começou em 2019 e atualmente conta com sete pesquisadores negros da região para revisitar os espaços que foram marcos na história afro-brasileira. No roteiro de Piracicaba, ela comentou, por exemplo, sobre o marco do antigo Pelourinho, onde as pessoas escravizadas eram castigadas, principalmente através de açoites e onde atualmente é a praça José Bonifácio. Segundo a guia, muitas pessoas se surpreendem por causa do processo de apagamento da história negra na cidade. “Hoje, ninguém percebe que aquele foi um espaço de controle social da população negra”, afirmou. “E hoje ainda permanecem as dinâmicas do Pelourinho naquele local porque ainda é um espaço de concentração de pessoas em situação de vulnerabilidade, muita gente preta. E isso é um resquício do Pelourinho”.

Marilda Soares lembrou que atualmente os professores sentem carência de material que aborde essa visão da história. “Temos muitas publicações da história oficial, que é positivista e traz personalidades históricas, mas não traz o povo”, destacou. “Em geral, não é a história da sociedade, mas de grupos em espaços de poder. O trabalho afrocentrado de reconhecer os caminhos da cidade que se reconfiguraram nos traz de volta essa memória para que permaneça e possa ser um legado”. Julia Madeira salientou que a memória é viva e também um espaço de disputa. E por isso, através do resgate dessas memórias, é possível levar novos significados a esses marcos existentes na cidade.

A coordenadora do Rotas Afro também foi homenageada durante a atividade da Escola do Legislativo, através da entrega da moção nº 71/2025, de autoria da vereadora Sílvia Morales (PV), do Mandato Coletivo A Cidade é Sua, de aplausos pela fundação e coordenação do Rotas Afro e realização da webserie. “Estamos felizes e honrados em fazer esta homenagem porque é de grande valia o trabalho do Rotas Afro, que dá visibilidade à história da população negra”, afirmou a vereadora. “Precisamos sempre trazer essa história para que esses espaços e essa cultura não acabem se perdendo”.

A atividade também contou com uma homenagem a Felipe Bicudo, que já foi funcionário da Câmara e morreu na última quinta-feira (15), aos 37 anos.