24 de outubro de 2025

Do tempo em que as vias públicas ainda aprendiam seus nomes

Nesta nova edição do Achados do Arquivo, dois textos do professor Guilherme Vitti refletem sobre o início das denominações das ruas de Piracicaba

Ao caminhar pelas ruas, avenidas e praças de Piracicaba, é fácil identificar o nome da via, o número de um imóvel, até mesmo o CEP, e descobrir o endereço completo de qualquer localidade. A maioria dos logradouros possui placas com as denominações, além disso, os imóveis trazem indicações numéricas nas fachadas. Sem contar o fato de que, por meio dos smartphones, é possível acessar aplicativos de localização que informam com precisão os endereços.

Essa facilidade, obviamente, não fazia parte da realidade de quem percorria a cidade no final do Século 19. Mas naquela época, nas grandes cidades já começavam a surgir, e a serem implantadas, formas mais aprimoradas de identificação de espaços e locais. E dentro deste contexto de modernização chegou a Piracicaba uma proposta para implantação desse novo serviço.

Entre o final de 1887 e o início de 1888 a Câmara Municipal deliberou sobre a proposta de emplacamento de casas, ruas e largos, apresentada por Francisco Ferreira de Morais, negociante de São Paulo. Documentos do Acervo Histórico detalham como se deu, pela primeira vez, esse serviço na cidade.

Esses documentos, e o que eles representam, são tema desta edição dá série Achados do Arquivo – Memórias de Um Arquivo, em que são transcritos dois textos sobre o assunto do professor Guilherme Vitti, guardião da História da Câmara e da cidade e patrono do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo. Serão apresentados dois artigos, já que um complementa o outro.

Abaixo, o primeiro:

“Quando o carteiro conhecia todos os cidadãos

Piracicaba, quando de sua elevação à Vila (município), apresentava cinco ruas e outras tantas travessas.

O termo ‘travessa’, então, não implicava, como agora, em ser rua curta, estreita, ou de menor importância. Queria simplesmente dar a entender que atravessava outra via, perpendicularmente.

Basta saber que, no delineamento novo da cidade, quando de sua mudança, a atual Rua Moraes Barros e suas paralelas foram chamadas de travessas.

Os nomes das vias públicas nasciam espontâneos, motivados por acidentes do terreno, pelo feitio das mesmas, do nome de um morador importante ou de comportamento estranho.

Houve nomes oriundos das profissões mais numerosas, exercidas naquele logradouro ou motivados pela existência de um templo, de um teatro, de uma praça. Isso em relação aos nomes das ruas.

Quanto à numeração dos prédios, só na década de 1880 é que ela aparece. Até então, o cidadão se guiava, na localização dos prédios, pelo conhecimento dos personagens mais importantes da rua ou pela existência de um marco topográfico. Assim, dizia-se ‘na casa da viúva Cunha, na ladeira do Itapeva, ou, junto ao portão do Caldas’.

Provam o alegado acima as descrições dos perímetros urbanos que a cidade foi tendo. São delimitados indicando-se a casa do sr. Fulano e o pasto do Cicrano.

Para determinar sua residência, o morador via-se na contingência de declarar que morava na 3ª travessa, junto à selaria do Beltrano.

As cartas de datas (lotes) concedidas aos piracicabanos pecam também pela imprecisão, pois o Arruador declarava, apenas, o tamanho do terreno, localizado na Rua Tal, perto do lote do sr. Tal.

Pelo que nos foi dado averiguar no arquivo atual da Câmara, só em 1887 o sistema de numeração dos logradouros públicos logrou vingar.

Francisco Ferreira de Morais, em junho desse ano, entregou uma proposta sobre a matéria à Câmara, do seguinte teor:

‘Francisco Ferreira de Morais, negociante, residente na cidade de São Paulo, vem propor a esta Ilustrada Câmara Municipal, fazer o emplacamento das casas, ruas e largos da mesma, pelo seu sistema de placas de ferro batido e esmaltado, sistema este usado e adotado nas principais cidades de Europa e Estados Unidos, e por ele introduzido no Brasil, tendo ele já feito este serviço nas cidades de São Paulo e Rio Claro, com contrato com as respectivas Câmaras Municipais, com grande acolhimento por toda imprensa e da população das ditas localidades.

As placas que o proponente oferece são de uma durabilidade secular, por serem de ferro batido e esmaltadas por ambas as faces, achando-se, assim, isentas da ação do tempo e de uma beleza incontestável e fácil leitura, mesmo à noite. O proponente oferece-se a fazer o emplacamento desta cidade, nas seguintes condições: condições estas, iguais ao contrato que firmou com a Câmara Municipal de São Paulo, a saber:

Compromete-se a fazer o emplacamento das casas, ruas e largos etc., desta cidade, de placas de nomenclaturas de 50x25, iguais à mostra que apresenta, à razão de dez mil réis cada uma, e as ditas de numeração 18x13, também iguais a amostra, a preço de 1$000 réis cada uma, todas colocadas nas respectivas casas e esquinas à custa do proponente.

Compromete-se a dar começo ao dito serviço dentro do prazo de seis meses e a terminar o mesmo dentro do prazo de sete meses, a contar da data do contrato que firmar com a Câmara, sob pena de multa não o fazendo no mesmo tempo, salvo força maior justificada’.

O contrato segue com outras cláusulas, ressaltando-se a que garante um estoque de placas à disposição da Câmara, e uma outra que sugere a possibilidade da Câmara cobrar uma taxa dos proprietários dos prédios, o que cobriria em muito a despesa com esse serviço.

A Câmara aprovou a proposta em setembro do mesmo ano, apoiando-se em parecer do vereador José Carlos de Arruda Pinto, assim exarado:

‘Tendo examinado a proposta do sr. Francisco Ferreira de Morais para emplacamento das casas, ruas e largos desta cidade, pelo sistema de placas de ferro batido e esmaltado, e entendendo que a mesma proposta é de utilidade, deve ser aceita. É este o meu parecer. A Câmara resolverá como melhor entender. Piracicaba, 1º de setembro de 1887. José Carlos de Arruda Pinto”.

Agora, o segundo texto:

“Uma planta descritiva da cidade, em 1888

Já vimos, em artigo transato, que o sr. Francisco Ferreira de Morais fora incumbido, pela Câmara Municipal, de pôr em execução o serviço de emplacamento dos logradouros públicos da cidade. Assinado o contrato pertinente, solicitou ele que o poder público confirmasse a lista das vias públicas e largos a serem beneficiados e que junto com o ofício encaminhava:

‘Tendo eu firmado contrato com essa Ilustrada Câmara Municipal para o serviço do emplacamento das casas e ruas dessa cidade, junto tenho a honra de remeter a V. Sas. uma lista das ruas e praças existentes nessa cidade, rogando a V. Sas. que se dignem denominar as ruas que ainda se acham sem nomes, bem assim de fazerem qualquer mudança de nomes que porventura tenham de fazer, a fim de habilitar a fazer a encomenda do material para o dito serviço.

Deus guarde a V. Sas.

Ilmos. Sr. Presidente e mais membros da Câmara Municipal de Piracicaba.

São Paulo, 21 de fevereiro de 1888.

Francisco Ferreira de Morais

LISTA DAS RUAS E PRAÇAS DA CIDADE DE PIRACICABA

- Rua em frente ao portão do Dr. João Conceição (não tem nome) (atual São Francisco)?

- Rua em frente à chácara de José da Silva (sem nome) (atual J. F. de Carvalho)

- Rua em frente à chácara do Dr. Felippe (sem nome) (atual Gomes Carneiro)

- Largo da Boa Morte

- Rua do Bom Jardim (atual Floriano Peixoto)?

- Rua do Riachuelo

- Rua do Ipiranga

- Rua Municipal (atual D. Pedro I)

- Rua da Esperança (atual D. Pedro II)

- Rua dos Ourives (atual Rangel Pestana)

- Rua da Quitanda (atual XV de Novembro)

- Rua Direita (atual Moraes Barros)

- Rua de São José

- Rua dos Pescadores (atual Prudente de Moraes)

- Rua das Flores (atual 13 de Maio)

- Rua do Piracicaba (atual Voluntários de Piracicaba)

- Rua do Salto (atual Regente Feijó)

- Rua do Rocio (atual Marechal Deodoro da Fonseca e Mons. Manoel Francisco Rosa)

- Rua da Ilha (atual Cristiano Cleopath)

- Rua do Cons. Costa Pinto (atual Saldanha Marinho)

- Rua do Matadouro (atual Campos Salles)

- Largo do Barão de Rezende (atual Parque Infantil e Hotel Beira Rio)

- Rua do Porto

- Rua do Sabão (atual Antônio Corrêa Barbosa)

- Rua da Ponte Nova (atual Luiz de Queiroz)

- Largo do Gavião (atual Delegacia de Polícia)

- Rua do Vergueiro

- Rua da Palma (atual Tiradentes)

- Rua do Rosário

- Largo de São Benedito (atual Forum)

- Largo da Cadeia Nova (atual Praça Tibiriçá)

- Rua Alferes José Caetano

- Rua da Boa Morte

- Largo da Matriz (atual Praça da Catedral)

- Largo do Teatro (atual Praça José Bonifácio, em frente ao Clube Coronel Barbosa)

- Rua do Santo Antônio

- Rua do Comércio (atual Gov. Pedro de Toledo)

- Largo do Mercado (atual Dr. Alfredo Cardoso)

- Rua da Glória (atual Benjamin Constant)

- Rua da Misericórdia (atual José Pinto de Almeida)

- Rua de Santa Cruz

- Largo de Santa Cruz

- Rua de São João

- Rua do Bom Jesus

- Largo do Bom Jesus

- Rua em seguida à chácara do Brito Velho (atual Alfredo Guedes)

- Rua Alegre (atual Bernardino de Campos)

- Rua da Boa Vista (atual Visconde do Rio Branco)

- Rua do Hospital (atual Manoel Ferraz de Arruda Campos)

- Travessa 1ª da Rua do Hospital (atual Silva Jardim)

- Travessa 2ª da Rua do Hospital (atual Aquilino Pacheco)

- Rua da parte de baixo do Cemitério (atual Av. Independência)

- Travessa 1ª que finda na chácara do Kenets (sem nome)?

- Travessa 2ª que finda na chácara do Manecão Ferraz (sem nome)

- Travessa 3ª acima da chácara do Dr. Prudente de Moraes (sem nome)?

- Travessa 1ª do lado de cima da caixa d’água (sem nome)?’

Pela relação, vê-se que, em 1888, Piracicaba apresentava 43 ruas (incluídas as travessas) e 9 largos, tendo havido, até o presente, a mudança de muitos nomes. Para facilitar a identificação atual dos locais, colocamos entre parênteses os nomes em vigor. Há logradouros que trocaram de nomes mais de quatro vezes.

Vamos pôr um paradeiro nisso?”.

O fato de o professor Guilherme ter colocado, entre parênteses, os nomes em vigor quando da escrita do seu texto, facilita, ainda hoje, na identificação dos espaços, eis que a maior parte das nomenclaturas anotadas pelo professor continuam as mesmas. Há quatro desses espaços que necessitam de breves observações:

O Largo do Gavião, à época de Vitti, Delegacia de Polícia, hoje é o 1º Distrito Policial.

O Largo de São Benedito, no tempo de Vitti, era o Forum. Hoje é o Centro Estadual de Educação de Jovens e Adultos, local que, até pouco tempo atrás, abrigou o Posto Fiscal.

O Largo da Matriz, na época do professor Guilherme, era a Praça da Catedral; e o Largo do Teatro era a Praça José Bonifácio, na área em frente ao Clube Coronel Barbosa.

Ao contrário dos dias atuais, a Rua Moraes Barros passava em frente à Catedral de Santo Antônio, traçado esse que dividia o espaço em dois: uma área imediatamente em frente à Catedral, chamada de Praça da Catedral; e outra, mais distante da igreja, chamada de Praça José Bonifácio. Hoje não existe mais a divisão entre Praça da Catedral e Praça José Bonifácio, sendo que o espaço todo é uma única praça, a José Bonifácio.

Na última frase de seu texto, Vitti faz um misto de desabafo e súplica: “Vamos pôr um paradeiro nisso?”. Incomodado com as constantes mudanças de denominações na cidade, o professor pedia que cessassem novas propostas de substituição de nomes.

Hoje, Guilherme Vitti poderia ficar tranquilo com relação a isso. A Lei Municipal nº 7.238/2011 proíbe a alteração ou a revogação de leis de denominação, excetuando casos muito específicos em que teriam que ser observadas as rígidas justificativas exigidas pela lei.

Um breve passeio - Contemplar o majestoso rio andando pela Rua do Porto, depois, subir a Rua dos Ourives até a Boa Morte, na sequência, seguir pela Rua da Esperança até o Largo do Mercado. Lá, comprar umas frutas e pegar a Rua do Comércio até o Largo do Teatro e, ali chegando, saborear a tarde debaixo de alguma árvore, ao som dos passarinhos que voejavam pelos céus da Noiva da Colina.

Os dois textos de Vitti, junto com os documentos que eles abordam, permitem um vislumbre da paisagem daquela Piracicaba do final do século 19.

Em comparação com os dias atuais, os traçados das vias são praticamente os mesmos, mas, o cenário, é outro: ruas e travessas de terra, por onde trafegavam carroças e cavalos; largos amplamente arborizados, propiciando um clima mais bucólico do que urbano; e todos – ruas, travessas e largos – prestes a receberem, pela primeira vez, placas de denominação.

ACHADOS DO ARQUIVO - A série "Achados do Arquivo" é uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba, com o objetivo de divulgar o acervo que está sob a guarda do Legislativo. As matérias são publicadas às sextas-feiras.

Texto: Bruno de Oliveira
Revisão: Erich Vallim Vicente - MTB 40.337