16 de fevereiro de 2024

‘Coleguinha do Sud Mennucci’ retrata aspectos da moda dos anos 1920

Carta deixada por Aracy de Oliveira na cápsula do tempo da escola e que foi aberta em 2022, traz à tona a cultura fashionista de um século atrás

Texto: Erich Vallim Vicente - MTB 40.337
Supervisão: Rebeca Paroli Makhoul - MTB 25.992

No último dia 14, chegou ao fim mais uma edição do “York Fashion Week”, um dos principais eventos da indústria da moda no mundo. Aproveitando a tendência, a série Achados do Arquivo desta semana traz o tema como destaque.

O interesse pelo vestuário não é algo tão novo. Já na década de 1920, as influências dos anos após a I Guerra Mundial mudaram a forma das pessoas se vestirem, ou, pelo menos, de parte delas. A elite detinha o capital que custeava as suntuosas e detalhadas vestimentas dos chamados “loucos anos 20”.

Em Piracicaba, a coisa não era diferente. A cidade se moldava aos padrões europeus, especialmente os parisienses. Eram poucas as fotos, provenientes de museus e acervos particulares, que permitem vislumbrar e estudar a tendência fashion do período, mas esse panorama mudou em 2022, quando a cápsula do tempo foi aberta na Escola Sud Mennucci, 100 anos depois de ter sido fechada.

Nela, em meio a documentos, objetos e iconografias, uma carta nos capta a atenção. Redigida pela jovem estudante Aracy de Oliveira, é um texto com uma altíssima riqueza de detalhes, que, apesar de ter a moda como assunto central, nos permite ir muito além.

A menina de 19 anos chama o leitor de “minha coleguinha”, talvez a mesma cogitasse que moda fosse tema de interesse apenas das mulheres. Na carta, fica transparente uma escritora tanto à frente de seu tempo – no quesito de questionar e indagar – quanto presa a questões de morais e preconceitos marcavam a época.

Já no segundo parágrafo, um relato chama a atenção:

“[...] A mulher e a moda. Falar-se da moda hoje em dia, é falar-se mal das mulheres. E o meu amigo insistia nessa audaciosa afirmação, dizendo-a indiscutível. Eu, como uma representante do belo sexo, não pude deixar de me revoltar com o descaramento desse meu amigo, mas, depois de lhe ouvir os horrores da moda, o seu exagero, e refletir sobre a sua feição atual, calei-me pesarosa. Infelizmente, nos tempos hodiernos, é assim.”

A jovem aluna deixa claro como o machismo aprisionava as mulheres de comentar algo mesmo que estivesse dentro do seu lugar de fala, no caso a moda feminina. Aracy talvez ficaria pasma com a evolução da moda nos dias atuais, onde a mesma corrompeu – no bom sentido – até mesmo os homens, que tiveram seu apogeu fashionista durante o século 18, para depois despencar novamente em vestimentas simples, comuns e deveras iguais.

A indumentária masculina tomou nova forma no início do século 20, precisamente na década de 1920 e em Piracicaba conforme as palavras de Aracy:

“[..] Os moços ultra chiques, esses, tornam-se efeminados. Tem faceirices de moça. Usa trajes delicados, de cinturinha de vespa a altura do peito, espartilha-se, tortura os pés nuns sapatinhos extremamente bicudos sabendo dançar num salão de baile com a elegância digna de uma Pavlova, conhece os mais afamados cremes, perfumes, entende de bordados e discute os mais interessantes assuntos com a tagarelice de uma jovem.”

O homem ainda é circundado por críticas se ousar discutir assuntos de moda feminina e, mesmo que esse pensamento crítico seja oriundo da época de Aracy -- de 100 anos atrás! --, permanece vivo o questionamento à liberdade.

Outro trecho da carta de Aracy chama atenção pela semelhança com os tempos atuais, onde os chamados influencers detêm poder fashionista muito grande e pessoas menos favorecidas tentam aderir ao modo que se vestem essas figuras da internet. A diferença daquela época, como já citado, era a mão de obra de uma roupa e o custo! E é valido lembrar que se comprava o tecido para criar-se a roupa, pois comprá-la pronta, na loja, era algo extremamente caro. A própria Aracy cita a questão de compra e confecção de roupas:

“As colegas se apressam na confecção de seus vestidos. O tempo é pouco. Os exames iniciam-se a 16 e não nos sobra momento afim de pesquisarmos as nossas belas vitrinas e lojas a procura de enfeites. Eu continuo sossegada. Já tenho uma seda cor de ouro e escolhi o modelo. Pedi o orçamento a minha modista: 92$000 (noventa e dois mil reis). Concordei, é um vestido singelo. Os enfeites são poucos: gaze, vidrilhos, tubos de seda, lantejoulas. Depois uns sapatinhos de verniz, um penteado a espanhola e eu já me imagino caminhando no palco do Santo Estevam para receber o meu diploma das mãos do nosso diretor.”

Atualmente, o que é considerado moda, não está acessível a todos e a chamada “alta costura” fica na posse quase exclusiva dos mais afortunados. Em 1922, não era diferente. Em um trecho esdrúxulo e notoriamente racista, Aracy expõe seu pensamento a respeito da moda nas mãos de pessoas menos favorecidas e sua intolerância em não aceitar que essas mesmas pessoas pudessem ter a liberdade de vestir como quisessem, além de considerar determinada vestimenta inutilizável por ter se tornado acessível a uma classe dita mais baixa:

“[...] A terceira e última classe formada quase toda por indivíduos de cor, passeia pelas calçadas do jardim empregando muitos empurrões e impedindo a passagem nesses lugares. O que de mais interessante ali se observa. Porque tendo a mania de imitar a sociedade e sendo a classe mais pobre, a moda, por isso é bem diferente, aparece muito tarde qual um fruto temporão ou constitui um ridículo arremedo da moda predominante. [...] Mas quando atinge essa classe, significa que a moda já morreu. (Fazendo referência à classe mais pobre) [...]. Quando aparece uma moda si despende grande orçamento, é douradora e permanece entre os ricos. Se está ao alcance de todas as bolsas vulgariza-se, rápida, chega a última classe e morre definitivamente.”

A íntegra da carta, com 11 páginas, de Aracy de Oliveira estão neste link. É notória a profundidade de suas palavras, redigidas em uma época específica, e que são capazes de proporcionar um livro de reflexões que ultrapassam a barreira do tempo. Para a jovem, a mulher e a moda são indissociáveis, e segundo ela, “ambas, desgraçadamente, se corrompem. Aquela corrompe a segunda, esta exagera a primeira”.

Concordando ou discordando, a ‘nossa coleguinha’ nos faz pensar. (Texto: Gabriel Tenório Venâncio, estagiário de História do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba)

ACHADOS DO ARQUIVO - A série "Achados do Arquivo" é uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba, para realizar publicações semanais no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo do Legislativo.