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16 DE FEVEREIRO DE 2024

‘Coleguinha do Sud Mennucci’ retrata aspectos da moda dos anos 1920


Carta deixada por Aracy de Oliveira na cápsula do tempo da escola e que foi aberta em 2022, traz à tona a cultura fashionista de um século atrás



EM PIRACICABA (SP)  

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Marcada pelo estilo de 'art déco', moda dos anos 1920 representou mudanças no comportamento feminino



No último dia 14, chegou ao fim mais uma edição do “York Fashion Week”, um dos principais eventos da indústria da moda no mundo. Aproveitando a tendência, a série Achados do Arquivo desta semana traz o tema como destaque.

O interesse pelo vestuário não é algo tão novo. Já na década de 1920, as influências dos anos após a I Guerra Mundial mudaram a forma das pessoas se vestirem, ou, pelo menos, de parte delas. A elite detinha o capital que custeava as suntuosas e detalhadas vestimentas dos chamados “loucos anos 20”.

Em Piracicaba, a coisa não era diferente. A cidade se moldava aos padrões europeus, especialmente os parisienses. Eram poucas as fotos, provenientes de museus e acervos particulares, que permitem vislumbrar e estudar a tendência fashion do período, mas esse panorama mudou em 2022, quando a cápsula do tempo foi aberta na Escola Sud Mennucci, 100 anos depois de ter sido fechada.

Nela, em meio a documentos, objetos e iconografias, uma carta nos capta a atenção. Redigida pela jovem estudante Aracy de Oliveira, é um texto com uma altíssima riqueza de detalhes, que, apesar de ter a moda como assunto central, nos permite ir muito além.

A menina de 19 anos chama o leitor de “minha coleguinha”, talvez a mesma cogitasse que moda fosse tema de interesse apenas das mulheres. Na carta, fica transparente uma escritora tanto à frente de seu tempo – no quesito de questionar e indagar – quanto presa a questões de morais e preconceitos marcavam a época.

Já no segundo parágrafo, um relato chama a atenção:

“[...] A mulher e a moda. Falar-se da moda hoje em dia, é falar-se mal das mulheres. E o meu amigo insistia nessa audaciosa afirmação, dizendo-a indiscutível. Eu, como uma representante do belo sexo, não pude deixar de me revoltar com o descaramento desse meu amigo, mas, depois de lhe ouvir os horrores da moda, o seu exagero, e refletir sobre a sua feição atual, calei-me pesarosa. Infelizmente, nos tempos hodiernos, é assim.”

A jovem aluna deixa claro como o machismo aprisionava as mulheres de comentar algo mesmo que estivesse dentro do seu lugar de fala, no caso a moda feminina. Aracy talvez ficaria pasma com a evolução da moda nos dias atuais, onde a mesma corrompeu – no bom sentido – até mesmo os homens, que tiveram seu apogeu fashionista durante o século 18, para depois despencar novamente em vestimentas simples, comuns e deveras iguais.

A indumentária masculina tomou nova forma no início do século 20, precisamente na década de 1920 e em Piracicaba conforme as palavras de Aracy:

“[..] Os moços ultra chiques, esses, tornam-se efeminados. Tem faceirices de moça. Usa trajes delicados, de cinturinha de vespa a altura do peito, espartilha-se, tortura os pés nuns sapatinhos extremamente bicudos sabendo dançar num salão de baile com a elegância digna de uma Pavlova, conhece os mais afamados cremes, perfumes, entende de bordados e discute os mais interessantes assuntos com a tagarelice de uma jovem.”

O homem ainda é circundado por críticas se ousar discutir assuntos de moda feminina e, mesmo que esse pensamento crítico seja oriundo da época de Aracy -- de 100 anos atrás! --, permanece vivo o questionamento à liberdade.

Outro trecho da carta de Aracy chama atenção pela semelhança com os tempos atuais, onde os chamados influencers detêm poder fashionista muito grande e pessoas menos favorecidas tentam aderir ao modo que se vestem essas figuras da internet. A diferença daquela época, como já citado, era a mão de obra de uma roupa e o custo! E é valido lembrar que se comprava o tecido para criar-se a roupa, pois comprá-la pronta, na loja, era algo extremamente caro. A própria Aracy cita a questão de compra e confecção de roupas:

“As colegas se apressam na confecção de seus vestidos. O tempo é pouco. Os exames iniciam-se a 16 e não nos sobra momento afim de pesquisarmos as nossas belas vitrinas e lojas a procura de enfeites. Eu continuo sossegada. Já tenho uma seda cor de ouro e escolhi o modelo. Pedi o orçamento a minha modista: 92$000 (noventa e dois mil reis). Concordei, é um vestido singelo. Os enfeites são poucos: gaze, vidrilhos, tubos de seda, lantejoulas. Depois uns sapatinhos de verniz, um penteado a espanhola e eu já me imagino caminhando no palco do Santo Estevam para receber o meu diploma das mãos do nosso diretor.”

Atualmente, o que é considerado moda, não está acessível a todos e a chamada “alta costura” fica na posse quase exclusiva dos mais afortunados. Em 1922, não era diferente. Em um trecho esdrúxulo e notoriamente racista, Aracy expõe seu pensamento a respeito da moda nas mãos de pessoas menos favorecidas e sua intolerância em não aceitar que essas mesmas pessoas pudessem ter a liberdade de vestir como quisessem, além de considerar determinada vestimenta inutilizável por ter se tornado acessível a uma classe dita mais baixa:

“[...] A terceira e última classe formada quase toda por indivíduos de cor, passeia pelas calçadas do jardim empregando muitos empurrões e impedindo a passagem nesses lugares. O que de mais interessante ali se observa. Porque tendo a mania de imitar a sociedade e sendo a classe mais pobre, a moda, por isso é bem diferente, aparece muito tarde qual um fruto temporão ou constitui um ridículo arremedo da moda predominante. [...] Mas quando atinge essa classe, significa que a moda já morreu. (Fazendo referência à classe mais pobre) [...]. Quando aparece uma moda si despende grande orçamento, é douradora e permanece entre os ricos. Se está ao alcance de todas as bolsas vulgariza-se, rápida, chega a última classe e morre definitivamente.”

A íntegra da carta, com 11 páginas, de Aracy de Oliveira estão neste link. É notória a profundidade de suas palavras, redigidas em uma época específica, e que são capazes de proporcionar um livro de reflexões que ultrapassam a barreira do tempo. Para a jovem, a mulher e a moda são indissociáveis, e segundo ela, “ambas, desgraçadamente, se corrompem. Aquela corrompe a segunda, esta exagera a primeira”.

Concordando ou discordando, a ‘nossa coleguinha’ nos faz pensar. (Texto: Gabriel Tenório Venâncio, estagiário de História do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba)

ACHADOS DO ARQUIVO - A série "Achados do Arquivo" é uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba, para realizar publicações semanais no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo do Legislativo.



Texto:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337


Achados do Arquivo Documentação

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