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13 DE AGOSTO DE 2021

Tributo sobre posse de escravos ajudou na construção de Piracicaba


Estabelecida em 1822, a “finta” determinava pagamento de 400 réis por escravo para a construção de obras públicas



EM PIRACICABA (SP)  

Parte da digitalização da ata que estabelecia a cobrança da finta de 400 réis por escravo

Parte da digitalização da ata que estabelecia a cobrança da finta de 400 réis por escravo
Foto: Guilherme Leite - MTB 21.401 (2 de 4) Salvar imagem em alta resolução

Giovanna Fenili Calabria: ata está guardada e devidamente acondicionada no Setor de Gestão de Documentação e Transparência da Câmara Municipal de Piracicaba

Giovanna Fenili Calabria: ata está guardada e devidamente acondicionada no Setor de Gestão de Documentação e Transparência da Câmara Municipal de Piracicaba

Noedi Monteiro: "negros, indígenas e sertanejos devem ser considerados os pais históricos de Piracicaba".

Noedi Monteiro: "negros, indígenas e sertanejos devem ser considerados os pais históricos de Piracicaba".

Rodrigo Sarruge Molina: "para se entender o presente é necessário investigarmos o passado".

Rodrigo Sarruge Molina: "para se entender o presente é necessário investigarmos o passado".
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Parte da digitalização da ata que estabelecia a cobrança da finta de 400 réis por escravo



Piracicaba deixa de ser Freguesia e torna-se Vila em 10 de agosto de 1822. Mais do que uma mudança de nomenclatura, na prática, o novo título significou o início da conquista da autonomia administrativa da futura cidade. 

Mas para que o poder local pudesse ser de fato exercido, além de designar pessoas para os cargos da administração, também se fazia necessária a construção dos espaços públicos reservados para as decisões e para a vida comunitária da então chamada Vila Nova da Constituição, como por exemplo a Casa de Câmara, a cadeia, o Concelho e as cazinhas”, espécie de mercado público da época.

Em Piracicaba (então Vila Nova da Constituição), o primeiro tributo estipulado pela municipalidade quando da conquista de sua autonomia aparece numa Ata de Vereança de 12 de agosto de 1822: “uma finta de quatrocentos réis por cabeça de cada escravo deste Distrito”.

Segundo Giovanna Fenili Calabria, arquivista e chefe do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba, local onde a ata original encontra-se guardada e preservada, “esse tributo foi estabelecido já na segunda reunião das autoridades locais da Vila, e determinava que o valor de quatrocentos réis deveria ser pago por cabeça de escravo macho acima dos sete anos de idade, por todos os proprietários de escravos”.

O primeiro ano deveria ser pago adiantado, e as demais parcelas deveriam ser descontadas de seis em seis meses até que as obras públicas fossem concluídas.

Contexto - De acordo com o professor doutor Rodrigo Sarruge Molina, piracicabano que leciona no curso de história da Universidade Federal do Espírito Santo, é importante, antes de mais nada, problematizar a questão de um ser humano ser considerado mercadoria: “nós podemos fazer uma analogia, por exemplo, com a tributação que hoje existe em relação a um automóvel ou outra máquina qualquer, a lógica era a mesma. Olhando para isso, hoje, nós conseguimos observar e refletir sobre a desumanidade disso tudo, de seres humanos serem considerados mercadorias e, portanto, passíveis de serem taxados enquanto tais”.

O também professor e historiador piracicabano Noedi Monteiro destaca que "a finta de 400 réis” aqui estabelecida para financiar as obras públicas “foi mais do que suficiente para bancar as construções, pois, em 1822, mais da metade da população piracicabana era composta de escravos. Das cerca de 2200 pessoas morando na Vila, 1108 eram escravos”, afirma Noedi.

Ele também destaca que esse número cresce ao longo dos anos, fazendo com que, mais à frente, já em 1887, “Piracicaba passasse a ser a terceira da província em número de escravos, com cerca de 5339, perdendo apenas para Bananal, com 6093, e para Campinas, com cerca de 14 mil escravos”. 

Presença negra - Ainda segundo Noedi Monteiro, a presença do negro em Piracicaba é anterior à própria povoação oficial, em 1787. “Há registros, em documentos oficiais da então Capitania de São Paulo, que dão conta da existência de escravos aqui já em 1733 e mesmo antes disso”, diz o professor.

Inicialmente empregada na cultura de cana-de-açúcar e, mais à frente, nas fazendas de café, a mão de obra escrava foi indispensável para a construção e desenvolvimento da atual cidade: "é por isso que os africanos, juntamente com indígenas e os sertanejos, devem ser considerados os pais históricos de Piracicaba", defende Noedi.

Meia Siza - Rodrigo Sarruge Molina também lembra da existência de outros tributos, tanto no período colonial quanto na fase imperial brasileira, como por exemplo a “meia siza”, que incidia sobre a compra e venda de escravos. 

“A meia siza foi criada pela família real em 1809, um ano depois de sua chegada ao Brasil, e tinha como objetivo manter o funcionamento do poder real recém instalado em terras brasileiras. Ela foi criada num contexto de pressão por parte da Inglaterra pelo fim do tráfico mundial e, portanto, foi um tributo que incidia sobre o mercado interno de escravos”, diz o professor. 

Noedi Monteiro destaca que a “meia siza” foi estabelecida por meio de alvará datado de 3 junho de 1809 e regulamentada mais à frente, por meio do Decreto 2.699, de novembro de 1860: “uma amostra de como a escravidão estava presente, inclusive em nosso ordenamento jurídico”, completa.  

Resgate histórico e o presente - Para ambos os historiadores, manter essa história viva é fundamental para que uma sociedade mais justa seja construída. 

“A escravidão perdurou por centenas de anos no Brasil e ela ainda reflete em nosso cotidiano. Estudando o passado, nós conseguimos entender os problemas do presente e tentar, enquanto sociedade, projetar um novo Brasil, um país sem racismo, que pague suas dívidas com os filhos desses escravizados”, diz Molina.

De forma semelhante, diz Noedi Monteiro: “nós muitas vezes ficamos de fora da história, e por isso é importante termos esse resgate, essa representatividade”.

Documento - A cópia digitalizada da ata de vereança instituindo a “finta de 400 réis” e a transcrição do documento, realizada pela arquivista Giovanna Fenili Calabria, podem ser baixadas ao final desta matéria.



Texto:  Fabio de Lima Alvarez - MTB 88.212
Supervisão:  Rodrigo Alves - MTB 42.583




Câmara

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