06 de novembro de 2025

Roda de conversa debate perdas humanas do Edifício Comurba à luz da psicanálise

Mediada pelo psicólogo Eduardo Nalin, atividade promovida pela Escola do Legislativo aconteceu na tarde desta quarta (5), no Museu Prudente de Moraes

O auditório do Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes foi palco na tarde desta quarta-feira (5) da roda de conversa “Comurba: Perdas Humanas”. O evento, que quase 61 anos depois da queda do Edifício Luiz de Queiroz, conhecido como Comurba, o qual era então construído de frente para a Praça José Bonifácio, no Centro, reuniu parentes e sobreviventes da tragédia que vitimou 48 pessoas.

O evento foi conduzido pelo psicólogo Eduardo Nalin, que coordena o grupo ECO 64, dedicado a desenvolver um trabalho psicanalítico com as vítimas e parentes e a coletar registros sobre o prédio - e contou com a organização da Escola do Legislativo da Câmara Municipal de Piracicaba.

A atividade faz parte do calendário de atividades da "Semana em Memória das Vítimas do Edifício Luiz de Queiroz - Comurba", instituída oficialmente neste ano por meio do decreto legislativo 61/2025, de autoria da vereadora Silvia Morales (PV), do mandato coletivo A Cidade é Sua.

O foco principal da roda de conversa - assim como o da exposição de mesmo nome, aberta ao público desde segunda-feira (3) até o dia 5 de dezembro, no Poupatempo estadual, que se situa no local onde o Comurba outrora se erguia, ao lado da Praça José Bonifácio - foi a valorização das diversas camadas de histórias humanas que orbitam a queda, que aos poucos são trazidas à luz dos escombros das memórias individuais e coletivas que o tempo e as contingências não conseguiram apagar.

“É uma forma de homenagear essas pessoas, humanizar a história, dando nomes e rostos a essas pessoas falecidas, porque não se tinha isso até então”, explicou Nalin, que realizou voluntariamente a coleta de diversas fotografias e registros de jornais e revistas da época, de hospitais que atenderam as vítimas e do Cemitério da Saudade, onde boa parte delas encontra-se sepultada.

Além da dificuldade do acesso para encontrar esses dados, de acordo com ele, muitos documentos oficiais com os nomes das vítimas apresentam grafias diversas. Isso, somado ao fato deles terem sido escritos à mão, torna a tarefa ainda mais trabalhosa.

Além de apresentar o material, durante o evento, o psicólogo também leu a lista das 48 vítimas fatais. Algumas delas ainda permanecem sem um rosto e duas, até hoje, não foram identificadas. Do total de mortos identificados, 39 eram do sexo masculino e 7 do feminino. O perfil etário das vítimas é diversificado: três tinham menos de 15 anos de idade; cinco delas tinham entre 15 e 18 anos; 18 entre 19 e 30 anos; sete na faixa de 31 a 40 anos de idade; quatro entre 41 e 50 anos; uma entre 51 a 60 anos; três entre 61 e 70; uma pessoa com mais de 70 anos e outras seis não tiveram a idade confirmada.

“Muitas pessoas até hoje pensam que só morreram trabalhadores que construíam o prédio, mas isso não é verdade. Muitos funcionários faleceram, mas também morreram mulheres e crianças que transitavam pela rua ou que estavam em imóveis ao lado”, falou.

Um dos casos mais emblemáticos foi o de uma família de nacionalidade portuguesa que morava em um sobrado ao lado do edifício: “tinham cinco mulheres ali. A avó, três filhas e uma neta. Todas faleceram. Inclusive, a vítima oficial mais nova era dessa família, a Fátima [Lúcia Pereira Coroa], que tinha seis anos”.

Segundo Nalin, a causa mortis da maioria das vítimas foi esmagamento parcial ou total de partes do corpo em decorrência do desabamento.

“É muito importante trazermos à tona, darmos visibilidade a tudo isso que aconteceu há mais de 60 anos. De lá para cá, pouco foi feito, e a gente trouxe agora essa semana para dar visibilidade às vítimas do Comurba”, disse Sílvia Morales, que antes da abertura da roda de conversa, ao lado de Pablo Carajol, também do mandato coletivo, entregaram um voto de congratulações em homenagem a Eduardo Nalin pelo trabalho desenvolvido.

Ressignificação e sublimação - A roda de conversa, assim como as atividades realizadas junto ao grupo ECO 94 buscam na psicanálise as bases para que as pessoas afetadas pela tragédia possam ressignificar, de alguma forma, a dor, canalizando-a para algo novo, melhor para elas e para os outros.

Ana Catarina de Oliveira Campos, que faz parte do grupo, ainda era um bebê em formação na barriga de sua mãe quando seu pai, Lázaro de Oliveira Campos, o Lazinho, servente de pedreiro de 28 anos que há apenas 1 mês trabalhava na construção do Comurba, sucumbiu junto com o prédio.

A dor da ausência era acompanhada de outra dor, a do silêncio, que a duras penas tentava recalcar a ausência à que ela e sua família foram obrigados a conviver: “Muitos assuntos na minha casa eram velados. Por muito tempo eu escutei: ‘não fique falando muito do seu pai para a sua mãe porque ela pode ficar triste. E a minha mãe também deve ter ouvido isso, de não falar sobre a morte de meu pai para nós. Então era um assunto que a gente não comentava”, disse.

A própria palavra Comurba, apesar de ter feito parte de sua vida, só foi por ela firmada em um papel 59 anos depois, quando resolveu trazer à vida, em forma de poema, versos livres que buscavam responder a pergunta: “quantos morrem naquele que morre?”

“Minhas ideias eram mais rápidas que as minhas mãos, e eu coloquei as ideias no papel, de forma livre e desorganizada. Quando eu terminei de escrever, me veio um sentimento muito emocionado. Eu havia, por 59 anos, falado que meu pai havia morrido no Comurba. Eu havia lido essa palavra em jornais e revistas, mas eu percebi que essa foi a primeira vez que eu escrevi a palavra Comurba. E quando eu a escrevi, tive que voltar para reler, porque eu achei que tinha errado. E aí eu realmente notei que eu nunca a tinha escrito. Eu fiquei ainda mais emotiva. Quando eu terminei e fui reler, percebi que eu não ia arrumar nada no texto, porque o Comurba significa exatamente isso, esse erro, esse desalinhamento, essa discordância”.

“Para a psicanálise existe algo que consideramos atemporal, alógico e amoral. Então, os sentimentos ficam guardados, retidos, até que possam ser externalizados através da palavra, da fala. Simplesmente proporcionar esse ambiente, essa oportunidade para que isso seja feito, é o que tem acontecido. As pessoas começam a ressignificar a perda”, disse Nalin.

De vítimas a heróis - Durante a roda de conversa, os participantes também defenderam a urgência da construção de um memorial às vítimas do Edifício Luiz de Queiroz, já trazida na Lei 10.191, de 8 de novembro de 2024, também de autoria de Silvia Morales, que prevê a ereção do memorial nas proximidades do Poupatempo Estadual.

O memorial, inclusive, já conta com projeto arquitetônico elaborado por voluntários, que o projetaram para ser construído em um jardim localizado onde as ruas Prudente de Moraes e Boa Morte se cruzam, localidade para onde o prédio - que caiu parcialmente - tombou em 6 de novembro de 1964, por volta das 13h35. 

“Já é uma lei. Estamos com um grupo e já estamos cobrando a prefeitura para que esse memorial seja instalado rapidamente”, falou Silvia Morales.

A construção do memorial para os participantes do Grupo ECO 64 significa muito mais do que a preservação da memória coletiva sobre a tragédia, mas também representa uma forma de ressignificar o impacto das mortes, deixando de tratar aqueles que morreram como vítimas, e passando a encará-los como heróis:

“Eles foram vítimas, mas também heróis, porque a partir de suas mortes, mudaram-se leis e começou-se a estudar mais. Muitas coisas mudaram depois desse acidente. Foi uma tragédia, mas poderiam ser milhares de pessoas. Temos que honrar a vida deles. Eram pessoas trabalhadoras, pessoas honestas, tinham suas famílias, seus filhos, tinham seus sonhos”, disse Ana Catarina.

“A cidade precisa também trabalhar isso, entender, respeitar e cuidar dessas vítimas. O memorial é um pedido de desculpas, uma retratação. Essa foi a primeira grande tragédia da construção civil e ainda está desse jeito. Meu trabalho é romper com esse silêncio, dizer que isso aconteceu e que continua acontecendo", acrescentou o psicólogo.

ECO 64 - O Grupo ECO 64 é destinado a familiares e sobreviventes, e se reúne a cada 15 dias em uma sala cedida na Catedral de Santo Antônio, na Praça José Bonifácio, no centro.

“Os interessados devem procurar a secretaria da Catedral e deixarem seus telefones para que eu entre em contato. Daí eu faço uma triagem, uma entrevista individual, para avaliar a entrada para o grupo. Não é filmado, não é gravado e é um serviço gratuito, voluntário”, finalizou Nalin.

Texto: Fabio de Lima Alvarez - MTB 88.212
Supervisão: Rodrigo Alves - MTB 42.583