15 de agosto de 2025
Entre o arado e a tragédia grega: o enigma da Família Salvadori
Processo-crime do Século 19 relata a morte do lavrador Victorio Salvadori, envolta em uma disputa de versões entre seus familiares
Em meio a uma roçada, o cadáver de um homem é encontrado. Em seu corpo, ferimentos, incluindo um grave na face posterior da cabeça. Seria um acidente de trabalho? Ou enredo de uma tragédia grega escrita por Sófocles? Seria o réu deste processo um filho enlutado? Ou o próprio Édipo Rei, culpado de um crime assombroso, o parricídio?
Neste processo, disponível no Acervo Histórico da Câmara e destaque desta semana na série Achados do Arquivo, que divulga documentos do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba, não há clareza sobre o ocorrido, nem um culpado autodeclarado, muito menos uma prisão em flagrante. Tem-se uma investigação, recheada de versões, achismos e teorias, que se inicia com o corpo de delito, realizado no dia 20 de agosto de 1887.
No auto, os peritos declararam que encontraram o cadáver de um homem de cor branca, estatura regular, de setenta anos, cabelos cortados e barba aparada. Relataram que o cadáver estava em estado avançado de decomposição, apresentando diversas contusões e fraturas, como no couro cabeludo, tíbia e rótula. E assim determinaram a causa imediata da morte: uma comoção cerebral intensa, por golpe com instrumento contundente na região occipital. A vítima é o lavrador Victorio Salvadori, proprietário de um sítio no Bairro dos Marins, local onde residia com filhos e nora.
Inicia-se a inquirição de testemunhas, todas com relatos e percepções similares: no dia 20 de agosto de 1887 os filhos Carlos e Benjamin relataram que seu pai havia desaparecido e saíram à procura de Victorio. Homens saíram em busca e encontraram o cadáver, deitado de costas, com a “cabeça quebrada”, mas com as roupas limpas e sem vestígios de sangue no local, denotando que não havia sido morto ali.
Citações nos depoimentos das testemunhas retratam que, pelo menos na visão popular, aquele era um crime já com os culpados bem estabelecidos:
“(...) no bairro corre como certo que os autores da morte de Victorio foram seus filhos Carlos, Benjamin e a nora (...) Disse mais que Victorio tinha uma herança para receber da Europa” (em transcrição livre)
“(...) é voz pública no bairro que Victorio Salvadori foi morte por seu próprio filho Carlos, com o qual sempre tinha duvidas. Disse mais que o falecido era bem quisto no bairro e não tinha inimigos” (em transcrição livre)
“(...) sabia por ouvir dizer que Victorio Salvadori tinha sido assassinado e atribuíam a autoria do crime a gente da casa visto como Victorio quando foi encontrado morto trajava roupa limpa demonstrando isso prevenção para a realização do delito” (em transcrição livre)
“(...) quando ele depoente convidou para irem procurar a seu pai que não aparecia, Carlos mostrou pouca vontade de ir, dizendo que já tinha ido procurar em dita derrubada e não o encontrou” (em transcrição livre)
Um depoimento, no mínimo peculiar, foi prestado pelo filho mais novo de Victorio, o jovem de 17 anos, Benjamin Salvadori. Ele relata que, dois dias antes que fosse achado o cadáver de seu pai, ele viu a sua cunhada Anna Gaviola, mulher de Carlos, bastante conspirada contra Victorio, e que ouviu estas palavras: “Sem vergonha falando canalhice”. Benjamin atribui o fato a alguma obscenidade dita pelo pai, algo que já havia ocorrido antes. E disse mais:
“(...) que no dia 19 de agosto deste ano, sexta feira, ele depoente tinha vindo a cidade fazer compras e trazer uma a carta para remeter pelo correio, ao chegar a chácara notou que seu irmão Carlos estava com os olhos vermelhos, ele depoente perguntando se seu pai tinha voltado da roça, Carlos respondendo que não e também perguntou-lhe se não viu na cidade, que entrando para dentro pronunciou estas palavras = Que vá para o inferno ainda que eu seja preso e enforcado = ao que ele depoente não sabe atribuir aquelas palavras afim que tinha (...) Que não atribui a outras pessoas a autoria do morte de seu pai senão a seu irmão, porque seu pai era muito estimado de todos os vizinhos e conhecidos e que notava que seu irmão sempre que falava com a mulher era em segredo, falando baixo de modo que ele depoente nada podia entender e que a noite em que seguiu-se a aquele dia conversaram quase toda a noite em voz baixa. Disse mais que dias depois que seu pai foi enterrado ouviu sua cunhada Anna perguntar a Carlos se ficariam morando ali mesmo ou se mudavam da chácara para outro lugar, seu mano respondeu que não sabia por que ali não podia morar, mas se saíssem dava indícios de culpabilidade na morte do pai. Disse mais, que a roupa que seu pai veio com ele era dele mesmo pelo que contaram todos da casa. Disse mais que na noite do dia em que saiu o cadáver para a cidade, esteve luz acessa toda a noite, fora dos costumes, e que seu irmão estava sempre levantando-se e saindo até a porta e tornava recolher-se e conversavam sempre baixo com a mulher. Que dias depois ele respondente vindo a casa de João Rabino Nepamoceno levar uns sais de cinza, seu irmão recomendou-lhe que indagasse alguma coisa contra ele pelo fato da morte de seu pai. Disse mais que depois da morte alguns dias, foi a chácara um alemão comprar milho e que logo que saiu, seu irmão Carlos disse a ele depoente que fez o que não devia ter feito e que perdera corpo e alma porque tinha matado o seu pai e que estava perdido, porém que ele depoente não temesse por que não era nada consigo e que só com ele era os trabalhos, mas que nada contasse a pessoa alguma” (em transcrição livre)
Em 2 de novembro de 1887, após as diligências e averiguações, o promotor público da Comarca de Piracicaba, Francisco Botelho, apresenta sua denúncia, contra os filhos do assassinado, Carlos e Benjamin Salvadori e a nora deste Anna Gaviola, que já se encontravam recolhidos a prisão.
A defesa dos réus é exposta em um ofício enviado ao Juiz de Direito em 7 de dezembro de 1887, que se inicia da seguinte maneira:
“Os acusados Carlos Salvadori, Benjamin Salvador e Anna Gaviola, presos na cadeia desta cidade, veem perante Vossa Excelência, pedir que seja posto termo às injustiças que estão sofrendo por lhes imputarem a morte de seu pai e sogro, Victorio Salvadori, e passam a demonstrar que estão inocentes” (em transcrição livre)
Segundo o documento, os réus e Victorio Salvadori viviam em perfeita harmonia e no dia 19 do agosto de 1887 este saiu para trabalhar, como de costume, mas não retornou, o que incomodou os acusados, e por isso saíram para procura-lo no dia seguinte bem cedo. Como não o encontraram, pediram ajuda a alguns vizinhos, e assim sendo feito, Victorio foi encontrado morto, “em um lugar lançante que só bem de perto se poderia ver”, ainda acrescentando que “ (...) pelo modo ou posição que foi ele encontrado, caído morto entre dois paus verificou-se que sem dúvida que indo ele subir nos ditos paus para alguma coisa, resvalou e caiu, batendo a nuca em alguma quina do pau, resultando por isso a morte, pois que Victorio foi encontrado com a cabeça quebrada para traz ou na nuca”.
Ressalta ainda que Carlos Salvadori não se esquivou de procurar o pai, como dizem algumas testemunhas, mas que ele estava ansioso e aflito. E também questionam qual vantagem teriam em fazer o pai desaparecer, uma vez que viviam em perfeita harmonia, e agora, além de ficarem sem “velho e querido pai, a quem idolatravam”, teriam que repartir o pouco que tinha com um número grande de irmãos e herdeiros.
Sobre as roupas limpas de Victorio, expõe que: “A questão de ser Victorio encontrado morto de roupa limpa, é justamente uma das defesas dos acusados, Victorio como se disse trocou de roupa ou camisa para sair de casa, tanto que a roupa ou camisa seja que ele tirou está até hoje guardada, suja mesmo, como tirou, sem sangue algum, e se fosse ela tirada do cadáver teria por força algum sangue, bem como a que foi Victorio encontrado com ele estaria necessariamente com algum sangue, e não limpa como dizem as [testemunhas], o que tudo prova que Victorio caindo e morrendo de repente conservou-se assim a roupa limpa como foi achado” (em transcrição livre)
“(...) os acusados vêm a presença Vossa Excelência implorar que sejam amparados os seus direitos e não sofram mais a injustiça de estarem gemendo inocentes em uma enxovia; sendo julgada improcedente a denúncia contra os acusados, sendo os mesmos postos em liberdade de que desde o mês de agosto até o presente se acham presos injustamente e assim esperam, por ser de justiça” (em transcrição livre)
A exposição da defesa e as suplicas presentes no ofício levaram este crime a passar de três acusados, para apenas um: Carlos Salvadori, 23 anos de idade, apontado no libelo crime acusatório no grau médio das penas do art. 192 do Código Criminal, (1830) por só concorrer a circunstancia do art.17, §7, que é elementar do crime.
Código Criminal (1830)}
Art. 192. Matar alguém com qualquer das circunstancias agravantes mencionadas no artigo dezesseis, números dois, sete, dez, onze, doze, treze, quatorze e dezessete.
Penas - de morte no grau máximo; galés perpetuas no médio; e de prisão com trabalho por vinte anos no mínimo.
Art. 16. São circunstancias agravantes:
7. Haver no ofendido a qualidade de ascendente, mestre, ou superior do delinquente, ou qualquer outra, que o constitua a respeito deste em razão de pai.
O tribunal do júri, ocorrido no dia 4 de abril de 1888, seguiu seus ritos corriqueiros, com acusação, defesa, réplica etc. E no fim, por unanimidade, os jurados decidiram que Carlos Salvadori não havia matado seu pai.
Absolvição. Esta é a sentença. Não foi parricídio, mas sim, um trágico acidente de trabalho, de um lavrador em sua roçada. Este não é um crime digno de tragédia grega, não é uma vertente do Édipo Rei, não é o assombroso assinado de um pai, pelas mãos do próprio filho. Não é! Pelo menos não é o que acha a júri de sentença.
ACHADOS DO ARQUIVO - A série "Achados do Arquivo" é uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba, com o objetivo de divulgar o acervo que está sob a guarda do Legislativo. As matérias são publicadas às sextas-feiras.
Pesquisa: Giovanna Felini Calabria
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