
22 DE DEZEMBRO DE 2021
Piracicaba registrou 88 mortos, numa cifra de 4.178 casos; decisões governamentais e o papel da Câmara foram fundamentais na defesa da população, no ano de 1918.
Casos mais graves da gripe espanhola aconteceram na região de Ártemis
Relatório anual do exercício financeiro do ano de 1918, apresentado à Câmara pelo prefeito Fernando Febeliano da Costa mostra as medidas sanitárias que Piracicaba tomou frente ao avanço da gripe espanhola, que atingiu a cidade, principalmente na região de Ártemis, no então bairro João Alfredo, Limoeiro, Paredão Vermelho e outras localidades.
As primeiras iniciativas partiram da Câmara, na época composta por 13 vereadores, onde foi aprovada, em reunião extraordinária do dia 30 de outubro de 1918, uma resolução de autoria de Sebastião Nogueira de Lima autorizando o prefeito a tomar todas medidas extraordinárias e necessárias à assistência pública, agindo como julgar mais acertado com as demais autoridades, sanitárias ou não, de modo a proteger os enfermos e debelar a epidemia de gripe na cidade.
A resolução da Câmara manifestava apoio para que se pusessem em prática todas as medidas reclamadas pela situação e reforçava que o prefeito, "com sua reconhecida dedicação e provada competência", saberia agir, convenientemente, a bem da saúde da população de Piracicaba, abrindo para isso os créditos que julgasse necessários, o que habilitava o Executivo Municipal a entrar no combate.
A pandemia atingiu fortemente Piracicaba, que tinha pouco mais de 55 mil habitantes e mobilizou toda a sociedade para o seu enfrentamento. O acervo do setor de Arquivo e Documentação da Câmara Municipal mostra que o impacto da gripe, entre 22 de outubro e 26 de dezembro daquele ano foi marcante, com 4.178 pessoas contaminadas, das quais 88 morreram. Foram notificados 2.627 casos ao Posto da Cruz Vermelha; 1.415 pelos clínicos e 136 hospitalizados, sendo impossível um cálculo, mesmo aproximado, do número de casos nos diferentes bairros do município.
O relatório municipal aponta que em função do aparecimento da gripe espanhola na Capital Federal, em princípios de outubro de 1918, assumindo rapidamente caráter epidêmico, ceifando vidas e desorganizando o serviço público e particular, propagou-se logo a moléstia à nossa capital, a despeito das providências adotadas, invadindo em seguida o interior do nosso Estado, dado a facilidade das comunicações.
Em 22 de outubro, surgiram em Piracicaba, e na Estação de João Alfredo, os primeiros casos da moléstia, procedentes da capital, onde ela já fazia inúmeras vítimas. Apesar de todas as precauções, a doença tomou conta de toda a zona urbana e arredores. Só perdeu o caráter epidêmica no fim de dezembro.
Na ocasião, o prefeito Febeliano reiterou que, cumprindo seu dever, a Prefeitura entendeu, desde logo, com a autoridade sanitária local, pondo à disposição todo o seu concurso e os recursos que fossem precisos à combater a doença, apresentando imediatamente o hospital de isolamento para acolher os enfermos, indigentes e nomeando o distinto facultativo desta localidade, Dr. Jorge Fragoso, não só para auxiliá-lo, como ainda para prestar assistência médica domiciliária aos enfermos necessitados.
"Ao mesmo tempo, todos os elementos vitais da sociedade piracicabana, num belo gesto de solidariedade, irmanados pelo sentimento único do altruísmo, confraternizavam-se para colaborar nesta campanha humanitária. Neste empenho, a distinta diretoria da Cruz Vermelha, compenetrada da elevada missão desta benemérita instituição, tomando a vanguarda, organizou uma comissão geral, constituída dos senhores, Dr. José Ferreira da Silva, Dr. Holger Jensen Kok, Dr. Antonio Augusto de Barros Penteado, Dr. Eduardo Kiehl, Dr. Octavio Teixeira Mendes, Cônego Manoel José Rosa, Padre Milita Roma, Pedro de Camargo, Professor José Martins de Toledo e por mim, prefeito, e representante da imprensa local, que constituiu diversas comissões especiais, composta de outras pessoas gradas da localidade, com o fim de angariar toda a sorte de donativos para socorrer outros, no prédio da Universidade Popular, gentilmente cedido pelo seu digno presidente, Dr. Sebastião Nogueira de Lima, e, finalmente, montou um hospital para enfermos sem recursos, no edifício da antiga Escola Normal, onde funcionava o Crupo Escolar 'Barão do Rio Branco', aproveitando-se, para isso, da autorização do secretário do Interior e utilizando-se de parte do material do Sanatório São Luiz, generosamente cedido à municipalidade, para aquele fim, pelo ilustre Clemente Ferreira", relatou o prefeito.
O relatório também aponta que a direção geral do posto e hospital foi confiada ao distinto inspetor Sanitário, Valentim Browne, que, desde o início, com o seu "incansável" auxiliar, Ribeiro Magalhães, havia tomado acertadas providências com aplausos de seus colegas e da população. Além das comissões mencionadas, prestaram relevantes serviços naquela quadra aflitiva, a nobre classe médica piracicabana, dignificando a corporação a que pertence pela abnegação e natural competência, as devotadas irmãs franciscanas, no serviço hospitalar, auxiliada pela enfermeira Maria Chagas, sob a direção da superiora irmã Canuta, a caridosa Associação Damas de Caridade; a denodada e simpática Associação dos Escoteiros; a caritativa instituição do Centro Espírita; as filantrópicas Sociedades Italiana Mutuo Socorro e Cristovam Colombo; a distinta diretoria da Escola Agrícola “Luiz Queiroz”; as dignas gerências das Empresas Hydraulixa, de luz elétrica e Fábrica “Arethuzina” e, bem assim, inúmeros particulares que, por diversos modos, manifestaram-se seu altruísmo.
"Com reconhecimento e orgulho, podemos afirmar que, sem exceção, todos os elementos componentes da sociedade piracicabana, cumpriram integralmente o seu dever, na fase angustiosa que atravessamos, merecendo os louvores e a gratidão da população. No intuito de combater-se o mal, foram divulgados os salutares conselhos recomendados pelo Serviço Sanitário, procurando obter-se por todos os meios práticos a sua disseminação, hospitalizando-se os enfermos indigentes e prestando-se assistência domiciliária, sob a todas as formas, aos necessitados."
Além da cidade, as localidades mais atingidas e em que se verificaram alguns casos graves, foram os bairros de João Alfredo, Limoeiro, Monte Alegre, Garcia, Marins, Milhã, Godinhos, Congonhal, Paredão, Pau d’Alhinho, Água Santa e Morro Grande, sendo muito mais benigna nos demais bairros, apesar da sua intensidade.
O relatório também aponta que no mesmo lapso de tempo, o obituário constatado no registro civil acusa um total de 88 óbitos da moléstia, sendo 37 ocorridos na cidade e 51 no município. Além de sinalizar que a pandemia gripal espanhola grassou com intensidade, mas, benignamente na cidade e seu município, sendo prontas as providências posta em prática para combate-la e fartos recursos, revelando o espírito culto e altamente humanitário dos piracicabanos.
CONTEXTO HISTÓRICO - Além das violentas disputas territoriais, a Primeira Guerra Mundial ficou marcada por uma enfermidade, de âmbito mundial, que contaminou 600 milhões de pessoas, dentre elas 20 milhões de vítimas fatais. A gripe surgiu em 1918 e, rapidamente, alastrou-se pela Europa e pela América. Devido ao fato de o maior número de mortes ter ocorrido na Espanha, a doença recebeu o nome de Gripe Espanhola ou Influenza, como ficou conhecida no meio médico.
Os sintomas eram os mesmos de uma gripe dos dias atuais, mas muito mais intensos: febre, coriza, mal-estar e dores de cabeça e no corpo. Porém, a incapacidade de se descobrir o agente causador fazia muitas pessoas falecerem em curto prazo.
No Brasil, a Influenza chegou por meio dos navios europeus e atingiu diversos Estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul. No Estado paulista, onde havia o melhor serviço de saúde para atendimento aos pacientes, o número de óbitos estimado superou 12 mil. O ápice da gripe espanhola durou dois anos, mas concentrou suas mortes em 1918, último ano da Primeira Guerra Mundial.
A fúria desse agente infeccioso, matou em 24 semanas mais gente do que a aids, que levou 24 anos para chegar a este número de vítimas. Considera-se que outra herança da gripe espanhola está nos bares. A população brasileira em peso recorreu a uma mistura de pinga (“álcool mata os germes”), mel e limão. Segundo o Instituto Brasileiro da Cachaça, foi essa combinação supostamente terapêutica que deu origem à "caipirinha".
Outro mistério que desafiava a medicina era a taxa de mortalidade em relação à faixa etária. Ela era especialmente letal na casa dos 20 aos 30 anos – que pela lógica deveria ser mais resistente. Em São Paulo, a média de mortes na cidade subiu de 33 óbitos por dia em 1917, antes da pandemia, para 250 em 1918. No total, foram mais de 5.300 mortes por gripe espanhola na capital paulista. Nos Estados Unidos ela foi tão violenta que vitimou um quarto da população, onde 675 mil pessoas morreram.
ACHADOS DO ARQUIVO – Na série Achados do Arquivo, semanalmente, às sextas-feiras, o setor de Comunicação, mediante apoio do setor Administrativo, em consonância com o setor de Arquivo e Documentação apresentam parte do acervo sob a guarda e responsabilidade da Câmara Municipal de Piracicaba, que em consonância com órgãos governamentais, pesquisadores e historiadores procuram trazer contribuições que reforçam o legado histórico da "Noiva da Colina".