PIRACICABA, SEGUNDA-FEIRA, 29 DE ABRIL DE 2024
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18 DE FEVEREIRO DE 2022

Câmara seguia ordens da Província de São Paulo na fuga de escravos


Decreto 8.061/1881 determinava o modo como deveriam ser feitas e averbadas as declarações de fugas e apreensões de cativos



EM PIRACICABA (SP)  

Câmara seguia ordens da Província de São Paulo na fuga de escravos

Câmara seguia ordens da Província de São Paulo na fuga de escravos
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Documentos em posse e sob a guarda da Câmara Municipal, a exemplo da circular sobre fuga de escravos – conforme anexo abaixo - demonstram como, sete anos antes da lei Áurea, em 13 de maio de 1888, que determinou o fim da escravidão no Brasil, assinada pela Princesa Isabel, a cidade de Piracicaba, então Vila Nova da Constituição, em 1881, se comportava perante as autoridades constituídas, sob o comando do governo da Província de São Paulo.

Circular do Governo da Província de São Paulo, datada de 10 de maio de 1881, na qual consta uma cópia do decreto 8.061/1881, determinava o modo como deveria serem feitas e averbadas as declarações de fugas e apreensões de escravos, que também eram impedidos de recorrer ao Fundo de Emancipação. Caberia multa aos proprietários ou administradores que não comunicassem a fuga de escravos que tivessem sobre seu domínio.

A série Achados do Arquivo, desta sexta-feira (18) também traz contribuições de pesquisadores, a exemplo de José Flávio Motta (professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo), em avaliações sobre as derradeiras transações do comércio de escravos, com reflexo na participação de Piracicaba, e dos historiadores locais: Noedi Monteiro (Instituto Superior de Ciências Aplicadas - Limeira) e Antônio Filogenio Júnior (Universidade Metodista de Piracicaba), em publicações sobre o que foi a resistência negra em Piracicaba, com foco na região Norte, que resultou na criação e aprovação do projeto de lei 295/2009, do ex-vereador Walter Ferreira da Silva, o Pira, no qual se denominou de Parque Histórico Quilombo Corumbataí, área de terras no distrito de Santa Teresinha, sinalizando o que foi um dos principais redutos de escravos foragidos no Estado de São Paulo.

Transações

O professor José Flávio Motta observa o que foi as derradeiras transações, no comércio de escravos, nos anos de 1880, com foco nas cidades de Areias (região do Vale do Paraíba), Piracicaba e Casa Branca (região de Campinas), onde se avalia o tráfico interno de cativos, no período 1881-1887, com base em livros de registro das escrituras de transações envolvendo escravos, em documentações levantadas nestas três cidades do Estado de São Paulo.

Considera-se que nestes três municípios se desenvolveu a produção cafeeira e, nos anos de 1880, vivenciavam situações distintas no tocante à continuada expansão da cafeicultura pelo território de São Paulo. Também se avalia que o comércio de cativos, tendo em vista o impacto sobre ele, da proximidade crescente da abolição, do imposto proibitivo à entrada de escravos na província (desde janeiro de 1881) e da lei dos sexagenários (1885). Todos esses elementos exerceram influência sobre o tráfico da mercadoria humana, mas não foram suficientes para encerrá-lo, ao menos até os meses finais de 1887.

Comércio

Sobre o comércio de cativos, esse período apresentou diversas peculiaridades, tendo em vista a promulgação da lei Áurea, a proximidade do término do escravismo no Brasil. Em meio ao evolver da questão servil, sofrendo desde 1871, o impacto da lei do Ventre Livre, o aludido comércio teve também de absorver, em sua etapa final, os efeitos da lei dos Sexagenários, em 1885. De fato, tanto as motivações como os efeitos dessas leis inscrevem-se no terreno da ambiguidade que medeia entre a concessão senhorial — entendida enquanto instrumento de controle social — e a conquista escrava.

José Motta cita Joseli Mendonça, em estudo dedicado em especial à lei Saraiva-Cotegipe: (...) parece evidente que os senhores e seus representantes no Legislativo souberam muito bem reconhecer o campo jurídico como um campo no qual teriam que arduamente se embrenhar para tentar fazer valer seus projetos de emancipação. Parece também evidente que os escravos — contando com o auxílio de advogados, curadores e algumas vezes até mesmo juízes — souberam muito bem reconhecer as possibilidades das leis e, recorrendo a elas, trilharam um dos caminhos possíveis para a liberdade.

Além disso, considera-se que o pano de fundo subjacente ao intervalo temporal viu-se caracterizado pelo grande obstáculo ao tráfico interprovincial da mercadoria humana representado pelo pesado tributo incidente sobre a entrada, na província paulista, de cativos comprados em outros lugares, medida adotada em outras províncias cafeeiras de forma praticamente simultânea na virada de 1880 para 1881.

José Motta também cita Robert Slenes, demonstrando que (...) o tráfico interno brasileiro desenvolveu-se em um contexto de crescente mobilização nacional e internacional contra a escravidão, o que tornou o comércio de seres humanos o foco da disputa “política” sobre o futuro do trabalho compulsório, envolvendo senhores, escravos e outros grupos sociais interessados; de fato, poder-se-ia sugerir que o colapso do mercado de escravos em 1881-83, refletiu à uma dramática mudança nas percepções sobre o futuro desses “ativos”, sendo um divisor de águas, do ponto de vista histórico, de maior significância do que os marcos legais anunciadores da emancipação parcial em 1871 e 1885 (...) e a abolição plena em 1888.

Impacto

Em tal pano de fundo foi fundamental o impacto das expectativas vigentes acerca do tempo de “sobrevida” da escravidão. Motta também se refere ao pensamento de Pedro Carvalho de Mello, por exemplo, para avaliar o comportamento dos cafeicultores da província do Rio de Janeiro. Suas estimativas permitiram-lhe sugerir, com razoável precisão, o momento a partir de quando se passou a contar com a iminente extinção do trabalho compulsório: a escravidão, que em 1881 esperava-se duraria pelo menos até 1910, foi submetida a uma expressiva mudança de expectativas em menos de dois anos. Já em 1883 os cafeicultores perceberam corretamente que a escravidão terminaria em data próxima a 1890. Dessa forma os proprietários de escravos praticamente previram essa ocorrência, cinco anos antes da abolição final, em 1888.

A dinâmica da instituição escravista, pois, foi obrigada a incorporar, mormente naqueles últimos anos de vigência da escravatura, o recrudescimento da dita pressão abolicionista. E teve de conviver também, com um dos componentes mais explosivos desta pressão: o movimento abolicionista, em sua vertente mais radical, envolvendo segmentos populares mais amplos e penetrando mesmo nas próprias senzalas.

Outra variável de extrema relevância foi a marcha da cafeicultura em direção ao Oeste paulista, estimulada por um conjunto de processos imbricados, em especial no âmbito da província de São Paulo, a exemplo da expansão ferroviária, do desenvolvimento do sistema bancário e do movimento imigratório. Estabelecia-se e sedimentava-se, em suma, o assim chamado complexo cafeeiro.

Esses condicionantes todos – em especial os concernentes à mão-de-obra empregada na cafeicultura – afetaram, todavia não impediram a continuidade da realização de transações envolvendo escravos, não obstante limitadas às “mercadorias” previamente introduzidas no perímetro provincial.

Em Areias, Piracicaba e Casa Branca, foram centenas as escrituras registradas, entre 1881 e 1887, relacionadas a tais transações; por conseguinte, centenas de cativos “mudaram de mãos” naqueles anos de 1880. E esses negócios tiveram lugar em contextos bastante distintos nesses três municípios, todos com economias, em grande medida, vinculadas à atividade cafeeira, porém vivenciando situações muito díspares no que respeita ao dinamismo apresentado por aquela lavoura.

Preços

Documentos notariais e manuscritos, configuram um rico manancial de informações acerca dos negócios realizados – a exemplo dos preços praticados –, dos escravos transacionados, dos contratantes e, mesmo, de seus eventuais procuradores. Desde 1860, a legislação imperial previa o lançamento das escrituras de negócios com escravos de valor superior a duzentos mil-réis em livros de notas específicos para essa finalidade. Sobre esse registro, o decreto nº 2.699, de 28 de novembro de 1860 dispunha o seguinte:

Art. 3º A escritura pública é da substância de todo e qualquer contrato de compra e venda, troca e dação in solutum de escravos, cujo valor ou preço exceder de 200$000, qualquer que for o lugar em que tais contratos se celebrarem ou efetuarem.

§ 1º As escrituras serão lavradas por ordem cronológica em livro especial de notas, aberto, numerado, rubricado e encerrado na forma da legislação em vigor, por Tabelião de notas legitimamente constituído (...), e conterão (...) os nomes e moradas dos contraentes, o nome, sexo, cor, ofício, ou profissão, estado, idade e naturalidade do escravo e quaisquer outras qualidades ou sinais que o possam distinguir.

Localidades

As três localidades escolhidas sofreram o condicionamento advindo do movimento de expansão da cafeicultura em São Paulo, todavia em momentos diferenciados e a partir de contextos específicos. Piracicaba: como observou Maria Thereza S. Petrone – em pesquisa sobre a expansão e declínio da lavoura canavieira em São Paulo (1765-1851), foi em torno de meados do século XIX que o café assumiu posição de maior relevância na região do “quadrilátero do açúcar” como um todo: “Depois de 1850-1851, temos uma exportação de café sempre maior do que a de açúcar. (...) O destino da lavoura canavieira já estava decidido, portanto, a partir de 1846-1847, mas torna-se mais patente a começar a segunda metade do século. O ‘quadrilátero do açúcar’ deixou de sê-lo, para se dedicar com verdadeira obsessão à cultura do café”.

No caso específico de Piracicaba (Constituição), escreveu Petrone: “Em 1854 existiam 51 fazendas de cana com uma produção de 131.000 arrobas. (...) A obsessão do café não atingiu a região, pelo menos até essa data. O cultivo da cana em Piracicaba, como em Itu, continuou progredindo, não sendo afetada pela penetração do café, como aconteceu em Campinas, portanto, eram, em meados do século passado, os redutos da cana de açúcar”. Contudo, mesmo em Piracicaba, em certa medida reticente à nova obsessão cafeeira, o sentido do movimento entre as duas atividades foi inequívoco.

Nas quantidades e procedências das exportações, pelo porto de Santos, verifica-se, em 1846-47, terem sido enviadas 50.633 arrobas de açúcar e 2.597 arrobas de café; já em 1854-55, a quantidade de açúcar reduziu-se para 38.707 arrobas, ao passo que a de café multiplicou-se por fator superior a 7, para 19.213 arrobas. Daí as características da lavoura cafeeira, na localidade de Constituição, descritas por Zaluar na abertura da década de 1860, características estas que diferenciam essa cidade do município valeparaibano de Areias: “A sua produção de café e açúcar regula, termo médio, em cento e cinquenta mil arrobas. É preciso notar que a cultura do café é aqui de data muito recente, pois ainda há muito pouco tempo os piracicabanos se entregavam exclusivamente ao cultivo da cana, que com esta inovação tem consideravelmente diminuído”.

Escravos

Levantamento de 298 escrituras mediante as quais foram negociados 701 cativos, mostram que dessas escrituras, 91 foram registradas em Areias (região do Vale do Paraíba), 104 em Piracicaba e 103 em Casa Branca (região de Campinas). Evidenciou-se grande disparidade no número médio de escravos por registro nos três municípios: 1,9 (Areias), 4,1 (Piracicaba) e 1,1 (Casa Branca). De fato, em Piracicaba, um terço dos cativos (33,6%) foi objeto de transações envolvendo grupos de mais de 20 pessoas.

A população escrava matriculada até 30 de março de 1887 igualou-se a 1.140 (Areias), 3.004 (Piracicaba) e 3.416 indivíduos (Casa Branca). Essa maior proporção, às vésperas da Abolição, de cativos no total dos habitantes de Casa Branca encontra correspondência, ao que parece, numa “qualidade” diferenciada da escravaria existente, em comparação aos municípios examinados das Zonas Norte e Central.

Em Casa Branca, o predomínio dos homens era maior, e lá também se faziam mais presentes os cativos mais jovens. Sintomaticamente, a localidade valeparaibana de Areias, na região onde se geravam as “cidades mortas” de Monteiro Lobato, fornece o contraponto, com uma distribuição sexual relativamente mais equilibrada e uma participação mais significativa de escravos mais velhos, enquanto Piracicaba ocupa uma posição intermediária.

Consideradas tão-somente as 701 pessoas negociadas no período 1881/87, computa-se quase nove décimos (88,7%) de indivíduos comprados/vendidos; cativos foram objeto de dação in solutum, foram penhorados, oito trocados e os dois restantes doados. Percebe-se, uma vez mais, a supremacia dos homens: 57,1% em Areias e alguns pontos porcentuais a mais em Piracicaba (62,8%) e Casa Branca (62,4%). 

Nesses contingentes masculinos, a maioria relativa era formada por adultos jovens, de 15 a 29 anos de idade, tanto em Areias (45,8%) como em Piracicaba (47,6%); no município de Casa Branca, essa maioria era absoluta (53,9%). Considera-se que essa proporção de homens adultos jovens transacionados no intervalo 1881/87 é uma proporção correlata referente ao período imediatamente anterior, grosso modo de 1874 a 1880 (Areias, 48,2%; Piracicaba, 53,0%; Casa Branca, 51,7%), sendo digno de nota que, dos três municípios examinados, apenas na localidade, região de Campinas, o porcentual elevou-se nos anos derradeiros do comércio de escravos.

O local de moradia dos contratantes era definido como “locais” (residência nas próprias localidades onde se fizeram os registros ou em seus termos); “intraprovinciais” (envolvendo contratantes moradores em localidades paulistas distintas daquelas onde se fizeram os registros); e “interprovinciais” (envolvendo contratantes residentes em outras províncias do Império).

Escrituras

As escrituras registradas em Piracicaba evidenciam a relevância, nos três decênios computados, dos negócios realizados no universo local. O maior predomínio das transações desse tipo ocorreu em inícios dos anos de 1870 (76,6%), em torno da promulgação e regulamentação da lei do Ventre Livre. Os tráficos intra e interprovincial acusaram nítida perda de fôlego enquanto não se tornaram mais nítidos para os escravistas os efeitos da libertação dos nascituros.

E a participação do comércio local cresceu novamente nos anos de 1880 (60,8%), em grande medida como decorrência do imposto proibitivo que passou a incidir sobre a entrada de cativos em território paulista. Nos sete anos, de 1881 a 1887, quase dois quintos das pessoas negociadas em Piracicaba foram-no pelo tráfico intraprovincial. Essa proporção foi praticamente idêntica à calculada, naquele mesmo período, para Areias (39,5%). Casa Branca, contudo, destoou das outras duas localidades; lá, o peso do tráfico intraprovincial foi significativamente maior: aproximadamente metade (50,5%) dos escravos então negociados.

Comparada à localidade valeparaibana e àquela situada na Zona Central, Casa Branca parece ser o município cujos escravistas menos se deixavam “contagiar” por conta dos caminhos inexoráveis então trilhados pela questão servil, os quais conduziriam ao término da instituição escravista em maio de 1888.

Nos negócios intraprovinciais, eram segmentados os cativos transacionados de acordo com as duas alternativas seguintes: aqueles que estão sendo “trazidos de” e aqueles que estão sendo “levados para” outras localidades paulistas. Em Areias, a grande maioria (83,1%) das pessoas negociadas no comércio intraprovincial saiu da localidade. Movimento similar, ainda que com menor intensidade (69,9%), verificou-se em Piracicaba. Em Casa Branca a situação inverteu-se: houve largo predomínio (89,6%) dos negócios intraprovinciais “de entrada”.

Em Piracicaba, observou-se igualmente o predomínio, com intensidade ainda maior, dos matriculados localmente ou no conjunto da província de São Paulo (85,5%). Foram poucos os cativos com matrícula no Rio de Janeiro ou Minas Gerais (2,1%), menos importantes do que os das províncias do Sul (2,6%). E foi de 9,5% a participação dos matriculados no Nordeste, com uma diversidade análoga (nove diferentes províncias) à verificada em Areias.

Movimentação

O cômputo dos locais de matrícula, pode muitas vezes implicar a subestimação da real amplitude dos deslocamentos sofridos pelos escravos. Em Piracicaba, por exemplo, aos 24 de julho de 1886, Dona Deolinda dos Santos Roza, moradora na também paulista São Roque, por intermédio de seu procurador, Joaquim da Silveira Mello, vendeu para Luis Antonio de Almeida Barros, residente em Piracicaba, o cativo Pedro, de 24 anos de idade. Esse jovem mulato, negociado por Rs. 500$000, nascera em Piedade e fora matriculado em Sorocaba; uma averbação em sua matrícula havia sido feita em São Roque.

Outro exemplo, o de Gregório, percebe-se a mesma subestimação acima mencionada, desta feita envolvendo o trânsito entre províncias. Esse homem, solteiro, pardo, do serviço da lavoura, foi vendido aos 6 de novembro de 1884, com 32 anos de idade, por Antonio Olinto de Carvalho para José Joaquim da Silva. A escritura referente a esse negócio, no valor de Rs. 600$000, foi registrada em Areias, local de moradia do comprador. Antonio Olinto, por sua vez, residia em Silveiras, também no Vale do Paraíba paulista. Natural do Maranhão, Gregório fora matriculado naquela província, no município de Alcântara. Antes de sua venda para Areias, porém, houve duas averbações em sua matrícula: a primeira em Vassouras, no Rio de Janeiro, e a segunda já em território paulista, em Silveiras.

Os valores pelos quais Gregório e Pedro foram transacionados evidenciam o declínio dos preços dos cativos observados no decênio de 1880. Esse comportamento mostra-se bastante nítido de ano a ano para todo o período 1861/87, dos preços nominais de adultos jovens, assim entendidas as pessoas com idades entre 15 e 29 anos.

Mulheres

Não se considerou os preços das mulheres negociadas na companhia de filhos (ingênuos), pois era possível que essas crianças fossem, apesar da lei do Ventre Livre, implicitamente avaliadas e seu valor agregado ao de suas mães. Por exemplo, Eduardo Paula Carvalho, morador em Piracicaba, comprou, aos 2 de junho de 1885, a escrava Constança por Rs. 500$000. A moça, de 24 anos, negra, solteira e natural da província do Piauí, foi por ele vendida cerca de um mês depois, aos 4 de julho, por Rs. 600$000. Ambas as transações foram realizadas no âmbito local e a única informação nova que se lê na escritura referente à segunda venda é que Luiza, filha ingênua de Constança, acompanhava sua mãe; o tabelião fazia constar das escrituras, nesses casos, a informação de que o vendedor transferia ao comprador o direito sobre os serviços dos filhos.

A grande maioria dos anos considerados, é de preços mais elevados dos jovens do sexo masculino. As diferenças ampliam-se muito no decênio de 1870, durante o qual os homens atingiram seus valores mais altos de todo o período. Para essa ampliação contribuiu também a lei do Ventre Livre, impactando decerto no declínio dos preços no início da década de 1870, em especial no caso das mulheres.

Os valores elevam-se a partir de 1874; todavia, enquanto os dos homens atingiriam um novo patamar, superando os “melhores momentos” dos anos de 1860, os das mulheres retomariam nível semelhante ao observado no decênio anterior, agora com maior estabilidade. Nos anos de 1880, a queda abrupta dos preços ocorreu para homens e mulheres; para elas, contudo, o declínio parece ter-se iniciado um pouco mais tarde, talvez até por força dos valores mais baixos atingidos em finais da década de 1870.

Disparidade

Quanto à disparidade de preços de acordo com o sexo, o decreto nº 9.517, de 14 de novembro de 1885, pelo qual se aprovava o regulamento para a execução da matrícula dos cativos brasileiros determinada pela lei Saraiva-Cotegipe, reiterava as disposições da dita lei no que respeita aos valores atribuídos às pessoas matriculadas, explicitando os menores preços das mulheres:

Art. 3º O valor será dado pelo senhor do escravo, ou quem legalmente por ele, não excedendo o máximo regulado pela idade do matriculando conforme a seguinte tabela: escravos menores de 30 anos (900$000), 30 a 40 (800$000), 40 a 50 (600$000), 50 a 55 (400$000) e de 55 a 60 (200$000).

§ 1º O valor das escravas será regulado pela mesma tabela com o abatimento de 25% dos preços nela estabelecidos. Por exemplo, em 1886, algumas escrituras nas quais um dos contratantes era criança órfã representada por seu tutor, traziam transcrita a autorização para o negócio dada pelo Juiz de Órfãos, e nela o magistrado fazia referência à venda pelo preço máximo da lei de 1885.

Sobrevida

Em Casa Branca, o mercado parece que sofreu um colapso no biênio 1883-84. Mas os negócios se recuperaram em certa medida no biênio seguinte, recuperação que também é indiciada pelos números de Areias, embora não tanto pelos de Piracicaba. No período em torno da lei nº 3.270, sobre a tabela de preços de cativos, a constatação é que não houve grandes transformações, principalmente em dois motivos interligados, que poderiam ser sugeridos a partir das disposições da lei explicando tal recuperação.

Primeiramente, nelas se consagrou a figura da indenização a ser paga aos senhores pelos escravos futuramente libertados. Em segundo, porque a lei estabelecia um cronograma de “desvalorização” dos cativos – e, por conseguinte, de gradual diminuição dos valores das indenizações –, sendo essa desvalorização total (atingindo 100%) no décimo terceiro ano do cronograma, mas relativamente “suave” nos anos iniciais.

Pela lei, no artigo terceiro, os escravos inscritos na matrícula seriam libertados mediante indenização de seu valor pelo Fundo de Emancipação ou por qualquer outra forma legal. O parágrafo primeiro detalhou estes valores: do valor primitivo com que for matriculado o escravo se deduzirão, no primeiro ano (2%), segundo (3%), terceiro (4%), quarto (5%), quinto (6%), sexto (6%), sétimo (8%), oitavo (9%), nono (10%), décimo (10%), undécimo (12%), décimo segundo (12%) e décimo terceiro (12%).

A dedução anual estava atrelada a qualquer prazo decorrido, seja feita a libertação pelo Fundo de Emancipação ou por qualquer outra forma legal. Os dados trabalhados referiram-se às localidades paulistas de Areias (Zona Norte, Vale do Paraíba), Piracicaba (Zona Central, “Oeste antigo”) e Casa Branca (Zona da Mogiana, região de Campinas, “Oeste novo”), situadas em locais que foram, de maneira sucessiva, atingidas pela “onda verde” da expansão cafeeira no território da província.

Essa cronologia distinta do desenvolvimento da cafeicultura nos três municípios, ainda que não seja o único fator condicionante, encontra-se, decerto, subjacente às diferenças verificadas em termos das características do tráfico de cativos. Assim, por exemplo, em Casa Branca, comparada a Areias e Piracicaba, uma escravaria com maior predomínio de homens e uma participação mais expressiva de pessoas com menos de 30 anos de idade correspondeu à dominância, no tráfico intraprovincial, do fluxo de entrada de escravos na localidade.

Dados anteriormente tabulados para as décadas de 1860 e 1870 apresentam breves comparações temporais, a exemplo do caso de Piracicaba, onde se ilustra que as distinções, por quatro subperíodos (1861/69, 1870/73, 1874/80 e 1881/87), dos negócios com cativos de acordo com diferentes tipos de tráfico (local, intraprovincial e interprovincial), em especial no que respeita aos avanços e recuos da participação relativa das transações entre província, com relevância sempre expressiva do comércio local.

Os dados apresentados possibilitam descortinar várias características do comércio da mercadoria humana, bem como das vicissitudes por ele sofridas nos anos finais do período escravista no Brasil. Embora conformando uma trajetória declinante para o conjunto do intervalo entre 1881 e 1887, pode-se identificar algumas oscilações vinculadas às expectativas diferenciadas e às ações dos diversos envolvidos, em especial os próprios escravos e, claro, seus proprietários.

Corumbataí

Em 1750, nas margens do entroncamento dos rios Piracicaba e Corumbataí, atual região de Santa Teresinha, se formava um dos principais quilombos já existentes do Estado de São Paulo e do Brasil. Sendo um dos mais antigos, se encontrava no ponto inicial do Campos de Araraquara (como era chamada esta região de Piracicaba, sentido ao Mato Grosso).

No quilombo urbano havia escravos fugitivos de aventureiros e exploradores, conta o historiador e professor, Noedi Monteiro, arqueólogo da cultura afro-brasileira, em colaboração para a 24ª edição da revista IHGP (Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba) de 2018. Ele relata em seu texto “Campos de Araraquara e Quilombo Corumbatahy: extremos da capitania de São Paulo à expansão Oeste do Brasil-Colônia (1700-1804)”, que com a navegação fluvial que ocorria no rio Piracicaba, realizada por viajantes que seguiam do Campos de Araraquara ao Mato Grosso até Goiás, o comércio foi intensificado entre escravos e comerciantes locais. Lenha, madeira e aguardente eram os principais produtos que sustentavam a relação entre eles. Além disso, o escambo era mais comum na agricultura, envolvendo o milho, a mandioca e a cana de açúcar.

O local era caminho para aqueles que iam atrás das minas de ouro, mas após haver a suspeita de mineração de ouro nos Campos de Araraquara e da possível aglomeração de negros que começaram a se povoar com a criação de fazendas de gados, o quilombo recebeu atenção do governo.

Em abril de 1804, o quilombo urbano Corumbataí foi destruído pelo sargento Carlos Bartolomeu de Arruda Botelho – que hoje dá nome a uma avenida importante em Piracicaba – com a ajuda da força militar da Capitania de São Paulo e a pedido do governador Antônio José de França e Horta.

Ocupado por quilombolas na época, o Quilombo Urbano Corumbataí foi responsável pela extensão política, econômica e social na região e, é claro, trouxe o conhecimento da construção da cultura africana.

O historiador e filósofo Antônio Filogenio Júnior, com base em sua pesquisa para a tese de doutorado a respeito dos quilombos já existentes no Brasil, afirma que neste local teve a presença de escravos de origem Bantu, vindos das regiões conhecidas atualmente como Congo e Angola, localizadas na África.

Segundo ele, o tempo de existência do quilombo é um período importante para as análises históricas da presença negra no país e tem um papel altamente significativo, não só para a comunidade negra no reconhecimento da sua história e dos seus atos de resistência, mas também para um reconhecimento histórico do município e da região.

Júnior também pontua que o local era uma organização comunitária e mesmo não utilizando necessariamente os valores que conhecemos hoje, como uma democracia moderna, era uma área aberta para o recebimento de outros povos, além dos negros, como indígenas e pessoas brancas, que compartilhavam um espaço em comum. “O quilombo é um exercício democrático de uma organização social que existiu no Brasil, em uma época que praticamente não se discutia isso. Eles foram um exemplo vivo dessa possibilidade”, ressalta.

O pesquisador diz que há registros históricos da quantidade de pessoas que não eram negras, mas residiam e viviam no quilombo, e registros, não somente aqui no estado de São Paulo, mas também em outras regiões do país, além da interação social, cultural e econômica desses quilombos com as comunidades vizinhas. Havia relações econômicas e sociais entre os quilombolas e o restante da população.

Denominação

Marcado por sua resistência escrava e influência territorial, o então vereador Walter Ferreira da Silva (1951-2011), conhecido como Pira e defensor da causa negra, resolveu reerguer a importância da história local. Foi então que pela atuação do professor e historiador Noedi Monteiro, criou-se o projeto de lei 295/2009, no qual se denominou o Parque Histórico Quilombo Corumbataí.

O parque se localiza no distrito de Santa Teresinha, na avenida Nossa Senhora do Carmo, entroncamento com a rua Adelmo Cavagioni. O parque costuma ser frequentado pelos moradores locais e se tornou um espaço de lazer. Além das atrações oferecidas aos munícipes, algumas festividades também são comemoradas ali, principalmente voltadas à comunidade negra. Entre elas, o Festival Afropira e o grupo Batuque de Umbigada já realizou oficinas ali.

ACHADOS DO ARQUIVO - a série "Achados do Arquivo" se pauta na publicação de parte do acervo do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligados ao Departamento Administrativo, criada pelo setor de Documentação, em parceria com o Departamento de Comunicação Social, com publicações no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo da Casa de Leis.



Texto:  Martim Vieira - MTB 21.939
Supervisão:  Rodrigo Alves - MTB 42.583
Revisão:  Martim Vieira - MTB 21.939




Achados do Arquivo Documentação

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