PIRACICABA, SÁBADO, 3 DE MAIO DE 2025
Página inicial  /  Intranet  /  Webmail

17 DE NOVEMBRO DE 2023

Antes da vacina, surto de febre amarela gerava pânico e negacionismo


Ata da sessão da Câmara de Piracicaba, em março de 1895, registra recomendação de secretário para cidade evitar “importação do mal”



EM PIRACICABA (SP)  

Salvar imagem em alta resolução

Foto que ilustra a capa do livro "“Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada”, publicado pela Editora Fiocruz. Foto: Acervo Coc/Fiocruz



Imagine o seguinte cenário: uma doença, cuja a causa da transmissão ainda é desconhecida, aterroriza os médicos e as lideranças governamentais. Sem formas eficazes de conter os surtos da moléstia, tenta-se algumas medidas que são meramente paliativas, mas isso não evita o medo. A solução será – somente no futuro – uma vacina, mas os cientistas ainda correm para criar o imunizante.

O cenário pode descrever o que o mundo passou, no início de 2020, com a pandemia do novo coronavírus, mas é semelhante ao que o Brasil – assim como outros países subtropicais – vivenciou ao longo de séculos, por conta da febre amarela. Um retrato desta realidade está na ata da sessão da Câmara Municipal de Piracicaba, em 4 de março de 1895, destaque da série Achados do Arquivo desta semana. 

Preservado pelo Setor de Gestão de Documentação e Arquivo do Legislativo piracicabano, o documento registra o fato:

“Ofício do Secretário de Estado dos Negócios do Interior dizendo que tendo se aumentado o número de casos de febre amarela em Santos, cumpre a esta Câmara tomar todas as providências preventivas a fim de evitar a importação do mal, empregando ativa vigilância sobre os passageiros e desinfetando carros e bagagens. Ao Intendente para cumprir.” (Em transcrição livre)

A vacinação contra a febre amarela só foi instituída no País em 1937. Portanto, décadas depois. Por isso, o registro do ofício encaminhado à Câmara causa certo estranhamento para quem o lê mais de um século depois. Com o conhecimento atual, “vigilância sobre os passageiros” e “desinfecção dos carros e bagagens” são medidas ineficazes para uma doença causada por um vírus que tem um mosquito como vetor e hospedeiro. Por mais importante que fosse a higienização dos locais compartilhados, isto não prevenia realmente a população. Era “negacionismo”.

“Neste período, havia um contexto diferente, onde ainda eram desconhecidas as causas de um dos maiores problemas de saúde pública nos séculos 19 e 20 no Brasil”, avalia Caroline Leme Margiota, estudante de História e responsável por transcrever o documento. “A falta de informações e a demasiada preocupação fazia com que as pessoas associassem a doença com a higienização de ambientes públicos, ou cargas externas, ou um fator qualquer”, acrescenta a pesquisadora, que prefere não fazer julgamento moral dos habitantes da cidade no século retrasado.

Ainda como parte do trabalho para entender como era o conhecimento daquela época, Caroline destaca o livro “Artes e Ofícios de Curar no Brasil”, que também integra o acervo da Câmara.

A publicação aborda temas que se dispõem às questões particulares brasileiras, entre elas os estudos durante o surto de febre amarela, no artigo “As experiências sobre a febre amarela em São Paulo”, escrito por Marta Almeida, no qual a autora aborda as maneiras de curas “alternativas”, levando em consideração a inexistência do conhecimento científico que permeavam aqueles tempos. “Naquele momento, já estava pautado o desenvolvimento da vacina para a imunidade da doença que alcançou taxa de mortalidade significativa”, acrescenta Caroline.

Na passagem dos séculos 19 e 20, o Brasil tentava encontrar explicações para a febre amarela, quando ainda se realizavam experimentos para entender as formas de transmissões da doença. “Um dos experimentos envolveu três pessoas, que ficaram em isolamento num ambiente inibido de mosquitos, porém, expostos a usos de itens contaminados por secreções de pessoas que portavam a doença”, detalha Caroline, ao apresentar parte da conclusão do levantamento realizado por Marta Almeida:

“(...) dormiam com lençóis e roupas manchados e infectados pelo sangue e vômito de doentes, num quarto vedado para que não entrasse nenhum mosquito e com uma estufa para que o recinto permanecesse constantemente calorento, evitando assim a contra-argumentação infeccionista de que a queda brusca de temperatura fosse capaz de destruir os ‘miasmas’ da febre amarela.”

Caroline recorda que os experimentos em humanos eram vistos, na época, como necessário devido à falta de contágio da doença em animais laboratoriais. Ela acrescenta que a conclusão de que o mosquito Aedes aegypti era o responsável pela contaminação foi ponto chave no controle da febre amarela, o que levou às medidas que conhecemos nos dias atuais, relativas a tratamento e abastecimento de água.

Também é importante salientar, no caso da febre amarela, a vacinação passou a ser universalizada, sobretudo quando o Brasil criou o SUS (Sistema Único de Saúde), que disponibiliza o imunizante em todos os cantos do País. Embora nos últimos anos, a doença tenha voltado a preocupar as autoridades médicas, devido ao baixo índice de vacinação (produto de negacionismo dos tempos atuais), a doença ainda é considerada rara e, mesmo num território de dimensões continentais, é mantida sob rígido controle sanitário.

Graças à vacina. Graças à Ciência.

Achados do Arquivo – A série "Achados do Arquivo" é uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo e de Documentação, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba. Ela traz publicações semanais no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo do Legislativo.



Texto:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337
Supervisão:  Rebeca Paroli Makhoul - MTB 25.992


Achados do Arquivo Documentação

Notícias relacionadas