
20 DE OUTUBRO DE 2023
Datado de 29 de novembro de 1857, documento da Câmara capta período de mudanças na dinâmica de produção agrícola na cidade
Fazenda Monte Alegre (1850): óleo sobre tela de Henrique Manzo/Museu Paulista da USP
Em meados do Século 19, Piracicaba era a chamada “boca do sertão”. Os tropeiros que iam e vinham entre o Leste litorâneo e o vasto campo de terra que se direciona ao Centro-Oeste brasileiro, se utilizavam da então Vila Constituição como uma linha de passagem de mercadorias, animais e pessoas. Neste fluxo constante, resultado de conjunturas nacionais, e até internacionais, a pequena comunidade absorvia transformações e, com elas, novos desafios e obstáculos.
Ofício de 29 de novembro de 1857, escrito pela Câmara como resposta do Presidente da Província, traz acontecimentos reveladores sobre o cotidiano da época, envolvendo produção agropecuária, escravismo e processo de colonização. O documento é o destaque desta semana da série Achados do Arquivo, uma produção em parceria entre o Departamento de Comunicação Social e o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba.
“É um material com uma riqueza de detalhes históricos, onde é possível perceber as preocupações dos vereadores da época quanto à mão de obra que se alterava entre escravizados e colonos e também a mudança na prevalência da capacidade produtiva do açúcar e o crescimento das áreas com o plantio de café”, explica Gabriel Tenório Venâncio, responsável pela pesquisa.
O relator inicia com breve introdução sobre a capacidade da terra piracicabana, a qual ele classifica como “bondosa”. Nesta matéria, a reprodução será feita na Língua Portuguesa da atualidade, com o objetivo de facilitar a compreensão:
“Tem esta Câmara a dizer que atualmente nada sensível há a respeito de atrasos, assim como tão bem nada de adiantamento, alguns estabelecimentos de açúcar terão diminuído sua produção, outros, porém, terão aumentado, mas nem isto nem aquilo é coisa sensível, nem isto nem aquilo traz outra origem se não a bondade das terras, melhor aproveitamento, etc.”
Na sequência, o relator do documento indica o crescimento do café e, com esse processo, a necessidade da troca da mão de obra, já que haveria uma dificuldade maior de obtenção de cativos (leia-se: escravizados):
“Para o futuro, porém, pode a produção desta cidade diminuir muito, podendo aliás quadruplicar na exportação do café. Julga esta Câmara que, para o futuro, é possível haver grande diferença na exportação desta cidade. Consistindo toda a riqueza do produto de serviços de braços cativos, estes se estragarão com morte, avanço de idade e então os que restarem não satisfarão os serviços; razão suficiente para diminuir a exportação, principalmente do café.”
No parágrafo seguinte, há o relato da preocupação dos produtores de café, que naquele período está em um amplo processo de expansão. Mas, no entanto, esbarram na dificuldade de haver “braços suficientes”:
“É incalculável o aumento de plantação que tem havido neste ramo de agricultura. Estes agricultores, esperançosos em poder adquirir escravos, tem se ocupado com grandes plantações, contando ressarcir-se com o alto preço dos cafés no mercado. Não sendo, porém, possível adquirir braços cativos suficientes para acudir as colheitas e preparos. Visto que as aquisições são raras e dispendiosas, segue-se necessariamente a perda do café e a diminuição das exportações.”
Aqui, um trecho curioso e que demonstra o frio olhar do legislador diante dos escravizados, como meras mercadorias a serem observadas em uma lógica de custo-benefício. O texto é o reflexo exato da conjuntura da época:
“Atente as razões acima citadas, ponderadas de morte e velhice. Porque, também, infelizmente a procriação – habilitação destes (os crioulos) – não estão na razão daqueles dois agentes destruidores (a morte e a velhice), ao que se pode adicionar moléstias, fugas etc.”
Em um outro trecho do ofício, o relator reforça o “marketing” ao Presidente da Província, com um relato sobre o potencial produtivo da cidade, e já naquela época se utilizando a cidade de Campinas como referencial de disputa:
“É possível, muito possível, que também se aumente extraordinariamente a exportação desta cidade e que ela rivalize ou exceda a qualquer outra povoação da Província, até mesmo Campinas. Grandes são as plantações de café e chá que há neste município e a propriedade e a fertilidade do terreno convidam ao agricultor a depositar nelas as suas esperanças e o seu futuro.”
A louvação diante do potencial produtivo local é seguida de uma demanda:
“Facilite a introdução de colonos, dê-lhes garantias, alguns agricultores e proprietários de grandes sítios que lhes cuidem em cafezais, quem colha e beneficie, seja de parceria, seja por qualquer meio que a exportação aumentará, decorram quatro ou seis anos. Possam os agricultores desempenhar-se que possam, em vez de comprar escravos, aplicar suas reservas na aquisição de colonos, e percam de uma vez a esperança de comprarem escravos, achem com facilidade colonos a escolham e contratem, que certamente aumentará de fortuna e exportação.”
Como justificativa para o pedido de facilitar a vinda de colonos, o relator do ofício também destaca a capacidade dos proprietários de terra em cumprirem com os seus compromissos de investimentos, mas também as dificuldades pelas quais haviam enfrentado, e o que impedia a busca por colonos “por conta própria”:
“Esta Câmara limita-se o prazo de quatro ou seis anos para os proprietários se desonerarem de suas dívidas. Infelizmente, o proprietário de estabelecimento de açúcar ou café, vendo que compravam escravos fosse pelo preço que fosse, contava pagar seu compromisso com a safra ou colheita futura, não se importando com geadas ou baixa de preço; satisfazia-se com o aumento de plantação e entendia que bastava isso para, no prazo porque comprava, pagar tudo.”
O relator do ofício acrescenta, ainda, que os esforços dificultosos – e muitas vezes, infrutíferos – na busca por escravizados, deixou os proprietários de terras endividados (ou “empenhados”) e dificultou a busca de colonos:
“Essas e outras defecções os torna hoje empenhados e sem se animarem a mandar vir colonos por sua conta, o que depende de muito capital, o que é dificultoso e exige sacríficos com braços livres nacionais”.
Ao concluir o ofício direcionado ao Presidente da Província, o relator da Câmara de Piracicaba ainda acrescenta que a realidade que passa a Vila da Constituição, também era de outras regiões do País e que resolver o problema da troca entre escravizados e colonos poderia significar o sucesso ou o fracasso da produção:
“Entende esta Câmara, assim como entenderá o Brasil todo, que é absolutamente impossível satisfazer as exigências, a experiência tem nos mostrado. Aquelas pois são as razões possível para o atraso da agricultura nesta cidade, ou razões possíveis de seu aumento.”
O documento é um retrato da época. E traz a dimensão local sobre a realidade nacional do escravismo e da produção agrícola. Piracicaba, enquanto “boca do sertão”, se revela como uma paisagem em movimento. Em constante movimento.
Achados do Arquivo – A série "Achados do Arquivo" é uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo e de Documentação, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba. Ela traz publicações semanais no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo do Legislativo.